Confissão
Trinta e nove anos. Meia vida passada, se isto se for aguentando, tomba daqui, tomba dali. E tudo por fazer! Comecei tarde, sem nenhuma preparação, e com defeitos horríveis, que tenho ido limando pouco a pouco, mas que resistem como fortalezas. Nasci afirmativo demais, puritano demais, uno demais, apesar duma timidez confrangedora, duma aceitação natural da volúpia e duma dispersão aflitiva a cada instante. Tenho medo dum polícia e sou capaz de enfrentar um exército; passo a vida a praticar virtudes que proíbo terminantemente aos outros; escrevo um poema, a dar uma consulta. De maneira que nunca consegui encontrar aquele equilíbrio criador onde julgo existir o pomar das grandes obras. Debato-me entre forças contraditórias, e ao cabo de cada livro sinto-me insatisfeito e culpado como um pecador que não cumpriu bem a sua penitência. Não tenho ambições fora da arte, e, dentro dela, só desejo conquistar a glória de a ter servido humilde e totalmente; mas não consegui ainda dar-lhe tudo, jogar a vida e a morte por ela. Para isso era preciso calcar aos pés o homem civil que sou, e não posso. Necessito de ter as minhas contas em dia como qualquer mortal honrado, e afligem-me os assuntos do mundo como casos pessoais.
Passagens sobre Livros
946 resultadosDesinferno II
Caísse a montanha e do oiro o brilho
O meigo jardim abolisse a flor
A mãe desmoesse as carnes do filho
Por botão de vídeo se fizesse amorO livro morresse, a obra parasse
Soasse a granizo o que era alegria
A porta do ar se calafetasse
Que eu de amor apenas ressuscitaria
Cada vez que vou escrever, é como se fosse a primeira vez. Cada livro meu é uma estreia penosa e feliz. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever.
À sua maneira, os livros são bastante bons, mas não são mais do que sub-títulos anémicos da vida.
Lidar com a Ansiedade
A ansiedade tanto pode ser uma sensação de vazio que antecede momentos de real perigo, como momentos imaginários, e são esses que nos interessam neste contexto do livro. A maior parte da ansiedade que sentes é devida a uma mente obstruída por problemas, incapaz de te obedecer e com uma capacidade tremenda de inventar cenários sombrios, criar situações desconfortáveis e de transformar a potencial calmaria da tua vida numa «estória» verdadeiramente soturna. Na verdade, tudo isto não passa de pura manipulação, caso contrário como é que seria possível faltar-te o ar, entrares em pânico ou sentires um aperto no peito relativamente a nada que ainda não aconteceu e que é impossível de prever? Só sentes tudo isto e muito mais porque nunca te esforçaste por disciplinar a mente e ela, como dominadora que é, exerce toda a sua criatividade no sentido de te aprisionar, retirando-te a autoestima e confiança. Viver refém da mente dá precisamente nisto, numa agonia sem fim onde o passado bloqueia, o presente inibe e o futuro assusta. É isto que queres? Calculo que não, mas o que é tens feito para mudar essa sensação de prisioneiro? A mente só deixa de mentir quando tu lhe ordenares a tua verdade e não existe verdade acerca do futuro,
Sê Altivo!
Altos pinheiros septuagenarios
E ainda empertigados sobre a serra!
Sois os Enviados-extraordinarios,
Embaixadores d’El-Rey Pan, na Terra.A noite, sob aquelles lampadarios,
Conferenciaes com elle… Ha paz? Ha guerra?
E tomam notas vossos secretarios,
Que o Livro Verde secular encerra.Hirtos e altos, Tayllerands dos montes!
Tendes a linha, não vergaes as frontes
Na exigencia da côrte, ou beija-mão!Voltaes aos homens com desdem a face…
Ai oxalá! que Pan me despachasse
Addido á vossa extranha legação!
Nos livros aprendi a fugir ao mal sem o experimentar.
O anjo da inocência foge de certos livros, como os editores de certos autores.
Crónica de Natal
Todos os anos, por esta altura, quando me pedem que escreva alguma coisa sobre o Natal, reajo de mau modo. «Outra vez, uma história de Natal! Que chatice!» — digo. As pessoas ficam muito chocadas quando eu falo assim. Acham que abuso dos direitos que me são conferidos. Os meus direitos são falar bem, assim como para outros não falar mal. Uma vez, em Paris, um chauffeur de táxi, desses que se fazem castiços e dizem palavrões para corresponder à fama que têm, aborreceu-me tanto que lhe respondi com palavrões. Ditos em francês, a mim não me impressionavam, mas ele levou muito a mal e ficou amuado. Como se eu pisasse um terreno que não era o meu e cometesse um abuso. Ele era malcriado mas eu – eu era injusta. Cada situação tem a sua justiça própria, é isto é duma complexidade que o código civil não alcança.
Mas dizia eu: «Outra vez o Natal, e toda essa boa vontade de encomenda!» Ponho-me a percorrer as imagens que são de praxe, anjos trombeteiros, pastores com capotes de burel e meninos pobres do tempo da Revolução Industrial inglesa. Pobres e explorados, mas, entretanto, não excluídos do trato social através dos seus conflitos próprios,
Caminhais em direcção da solidão. Eu, não, eu tenho os livros.
Circundado pelos livros, numa sala de estudos estreita e empoeirada, é muito fácil esquecer o corpo; e o senhor sabe que o corpo deve ser tão bem tratado quanto a alma, se ambos devem atingir a mesma perfeição da qual são capazes.
Não podemos arrancar uma página do livro da nossa vida, mas podemos atirar o livro todo para o fogo.
A Arte de Não Ler
A arte de não ler é muito importante. Consiste em não sentir interesse algum por aquilo que está a atrair a atenção do público numa determinada altura. Quando um panfleto político ou eclesiástico, um romance ou um poema estão a causar grande sensação, não devemos esquecer-nos de que quem escreve para tolos tem sempre grande público. Uma condição prévia para ler bons livros é não ler os maus: a nossa vida é curta.
Os livros são abelhas que levam o pólen de uma inteligência a outra.
O Meu Cachimbo
Ó meu cachimbo! Amo-te immenso!
Tu, meu thuribudo sagrado!
Com que, bom Abbade, incenso
A Abbadia do meu passado.Fumo? E occorre-me á lembrança
Todo esse tempo que lá vae,
Quando fumava, ainda criança,
Ás escondidas do meu Pae.Vejo passar a minha vida,
Como n’um grande cosmorama:
Homem feito, pallida Ermida,
Infante, pela mão da ama…Por alta noite, ás horas mortas,
Quando não se ouve pio, ou voz,
Fecho os meus livros, fecho as portas
Para fallar comtigo a sós.E a noite perde-se em cavaco,
Na Torre d’Anto, aonde eu moro!
Alli, mettido no buraco,
Fumo e, a fumar, ás vezes… choro.Chorando (penso e não o digo)
Os olhos fitos neste chão,
Que tu és leal, és meu amigo…
Os meus amigos onde estão?Não sei. Tral-os-á o «nevoeiro»…
Os trez, os intimos, Aquelles,
Estão na Morte, no extrangeiro…
Dos mais não sei, perdi-me d’elles.Morreram-me uns. Por elles peço
A Deus, quando está de maré:
E, ás noites,
Desde quando terá de ser o autor de um livro aquele que o entende melhor?
É ainda possível chorar sobre as páginas de um livro, mas não se pode derramar lágrimas sobre um disco rígido.
Ler ou Copiar um Texto
O efeito de uma estrada campestre não é o mesmo quando se caminha por ela ou quando a sobrevoamos de avião. De igual modo, o efeito de um texto não é o mesmo quando ele é lido ou copiado. O passageiro do avião vê apenas como a estrada abre caminho pela paisagem, como ela se desenrola de acordo com o padrão do terreno adjacente. Somente aquele que percorre a estrada a pé se dá conta dos efeitos que ela produz e de como daquela mesma paisagem, que aos olhos de quem a sobrevoa não passa de um terreno indiferenciado, afloram distâncias, belvederes, clareiras, perspectivas a cada nova curva […]. Apenas o texto copiado produz esse poderoso efeito na alma daquele que dele se ocupa, ao passo que o mero leitor jamais descobre os novos aspectos do seu ser profundo que são abertos pelo texto como uma estrada talhada na sua floresta interior, sempre a fechar-se atrás de si. Pois o leitor segue os movimentos de sua mente no vôo livre do devaneio, ao passo que o copiador os submete ao seu comando. A prática chinesa de copiar livros era assim uma incomparável garantia de cultura literária, e a arte de fazer transcrições,
Aquelle Sabio
N’aquellas altas janellas
Que deitam para o telhado;
Eu vejo-o sempre encostado,
A namorar as estrellas.Tem assim ares d’empyrico
Mui lido em philosophástros;
É um pobre poeta lyrico,
Que escreve cartas aos astros.Traz luto nos seus vestidos
Por uma Ophelia de menos,
Tem uns cabellos compridos,
E uns olhos tristes, serenos.Parece um Jove proscripto,
E já descrente das Ledas,
Conhece o hebraico, o sanscrito
E os livros santos dos Vedas.Espelha na luz do olhar
Não sei que visões amenas;
Anda sempre a imaginar
Idylios ás açucenas.E aquella mulher vaidosa
–Que elle chama a sua Egeria–
Ri d’aquella alma anciosa,
E aquella triste miseria………………………………………
……………………………………
……………………………………Mais de tres dias ou quatro
Que lhe falta o necessario;
Estava hontem no theatro
Com luvas côr de canario.
O livro do mundo está escrito em linguagem matemática.