Citação de

Um Único Poema

Quando olho para esse livro («Poesia Toda»), vejo que nĂŁo fabriquei ou instruĂ­ ou afeiçoei objectos — estas palavras nĂŁo supĂ”em o mesmo modo de fazer—, vejo que escrevi apenas um poema, um poema em poemas; durante a vida inteira brandi em todas as direcçÔes o mesmo aparelho, a mesma arma furiosa. Fui um inocente, porque sĂł se consegue isso com inocĂȘncia. E se a inocĂȘncia Ă© uma condição insubstituĂ­vel de escĂąndalo, uma transparente e mobilizadora familiaridade com a terra, constitui tambĂ©m um revĂ©s: pois hĂĄ uma altura em que se sabe: as coisas ludibriaram-nos, ludibriĂĄmo-nos nas coisas; a inocĂȘncia deveria ter-nos oferecido uma vida estupenda, um tumulto: o ar em torno proporcionado como pura levitação; ver, tocar; os mais simples actos e factos prĂłximos como instantĂąneo e completo conhecimento. Era assim, foi assim, mas a dor, as vozes demonĂ­acas, o abismo junto Ă  dança, a noite que se vai insinuando a toda a altura e largura da luz, tudo Isso invade a inocĂȘncia — e entĂŁo jĂĄ nĂŁo sabemos nada, por exemplo: serĂĄ inocente a nossa inocĂȘncia? A inocĂȘncia Ă© um estado clandestino na ditadura do mundo; tem se der astuta, tem de recorrer a todas as torpezas para lutar e escapar, seduz as criaturas, responde Ă  memĂłria com a memĂłria, a sua fala perante o demonĂ­aco entretece-se com a fala demonĂ­aca. E temos assim a inocĂȘncia envolvida nas turvaçÔes da guerra, e Ă© o guerreiro quem alimenta a guerra, Ă© ele que alimenta o outro guerreiro, a sombra. Na verdade a inocĂȘncia nĂŁo existe, nĂŁo existe o demonĂ­aco, senĂŁo como partes dinĂąmicas de um poder, e nĂŁo exprimo aqui nenhuma ideia moral, polĂ­tica, institucional, mas uma ideia da ordem das coisas, forças e expressĂ”es. A magia, esse reino tĂŁo complexo de poder, Ă© um casamento natural mas dramĂĄtico, uma coordenada desavença de nĂ­veis da consciĂȘncia, formulaçÔes do desejo, domĂ­nios da realidade, debates da pessoa com a realidade. O objecto que eu agito mortiferamente Ă© uma arma ambĂ­gua Como se eu estivesse metido numa espĂ©cie de guerra santa: a minha inocĂȘncia Ă© assassina.