Um Único Poema

Quando olho para esse livro («Poesia Toda»), vejo que nĂŁo fabriquei ou instruĂ­ ou afeiçoei objectos — estas palavras nĂŁo supĂ”em o mesmo modo de fazer—, vejo que escrevi apenas um poema, um poema em poemas; durante a vida inteira brandi em todas as direcçÔes o mesmo aparelho, a mesma arma furiosa. Fui um inocente, porque sĂł se consegue isso com inocĂȘncia. E se a inocĂȘncia Ă© uma condição insubstituĂ­vel de escĂąndalo, uma transparente e mobilizadora familiaridade com a terra, constitui tambĂ©m um revĂ©s: pois hĂĄ uma altura em que se sabe: as coisas ludibriaram-nos, ludibriĂĄmo-nos nas coisas; a inocĂȘncia deveria ter-nos oferecido uma vida estupenda, um tumulto: o ar em torno proporcionado como pura levitação; ver, tocar; os mais simples actos e factos prĂłximos como instantĂąneo e completo conhecimento. Era assim, foi assim, mas a dor, as vozes demonĂ­acas, o abismo junto Ă  dança, a noite que se vai insinuando a toda a altura e largura da luz, tudo Isso invade a inocĂȘncia — e entĂŁo jĂĄ nĂŁo sabemos nada, por exemplo: serĂĄ inocente a nossa inocĂȘncia? A inocĂȘncia Ă© um estado clandestino na ditadura do mundo; tem se der astuta, tem de recorrer a todas as torpezas para lutar e escapar,

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