A Palavra Destino
Deixai vir a mim
a palavra destino.Manhã de surpresas, lascívia e gema.
Acasos felizes, deslizes.
Ovo dentro da ave dentro do ovo.
Palavra folha e flor.Deixai vir a mim palavra
e seus versos, reversos:
metamorfose,
metaformosa.Deixai vir a mim
a palavra pão-de-consolo.
Livre de ataduras, esparadrapos,
choques elétricos
e sutis guardanapos em seco engolidos socos.Deixai vir a mim
a palavra intumescida pelo desejo
a palavra em alvoroço sutil, ardil
e ave na folhagem da memória.
A palavra estremecida entre a palavra.
A palavra entre o som
mas entre o silêncio do som.Deixai vir a mim
a palavra entre homem e homem.
E a palavra entre o homem
e seu coração posto à prova
na liberdade da palavra coração.Deixai vir a mim
a palavra destino.
Passagens sobre Desejos
1180 resultadosFala do Velho do Restelo ao Astronauta
Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.
Interrogação
Onde é que está essa mulher fadada,
Que o meu sonho criou num desvario,
Acaso existe, acaso foi criada,
Ou vive apenas porque eu a crio?Onde é que vive essa mulher sonhada,
Da minha mesa o vinho e o loiro trigo,
Acaso morta jaz desfeita em nada?
Acaso, assim, há-de vir ter comigo?Onde é que existe essa mulher que um dia
Eu me pus a chamar e não me ouviu,
Onde é que passa oculta a sua vida,
Acaso nunca essa mulher me viu?Acaso, às vezes penso, essa mulher
Traz em sua alma algum poder oculto,
Para que nunca, ou uma vez sequer,
Caísse em mim a sombra do seu vulto?Acaso nunca essa mulher que eu sonho,
Há-de vir abraçar-se ao meu desejo,
Pondo em mim esse amor que nela eu ponho,
Acaso nunca me dará um beijo?Acaso nunca essa mulher que eu amo,
Como se pode amar com mais loucura,
Há-de vir até mim quando eu a chamo,
Para me dar um pouco de ternura?Acaso nunca essa mulher dilecta
Enxugará meus olhos ao sol-pôr,
Poderei acaso consentir que as coisas – ou o desejo que tenha delas – me afastem de mim?
O amor é o desejo de alcançar a amizade de uma pessoa que nos atrai pela beleza.
Quando exageramos a ternura que os nossos amigos sentem por nós, é quase sempre menos por reconhecimento, que pelo desejo de valorizar o nosso mérito.
O Amor pela Humanidade Começa
As paixões diminuem com a idade. O amor, que não deve ser classificado entre as paixões, diminui da mesma maneira. O que perde por um lado recupera por outro. Já não é severo para o objecto dos seus desejos, fazendo justiça a si mesmo: a expansão é aceite. Os sentidos já não possuem o seu aguilhão para excitar os sexos da carne. O amor pela humanidade começa. Nesses dias em que o homem sente que se torna um altar ornado pelas suas virtudes, feitas as contas de cada dor que se revelou, a alma, num recôndito do coração onde tudo parece ter origem, sente qualquer coisa que já não palpita. Referi-me à recordação.
Meridional
Cabelos
Ó vagas de cabelo esparsas longamente,
Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,
E tendes o cristal dum lago refulgente
E a rude escuridão dum largo e negro mar;Cabelos torrenciais daquela que me enleva,
Deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus
No báratro febril da vossa grande treva,
Que tem cintilações e meigos céus de luz.Deixai-me navegar, morosamente, a remos,
Quando ele estiver brando e livre de tufões,
E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos
E enchamos de harmonia as amplas solidões.Deixai-me naufragar no cimo dos cachopos
Ocultos nesse abismo ebânico e tão bom
Como um licor renano a fermentar nos copos,
Abismo que se espraia em rendas de Alençon!E, ó mágica mulher, ó minha Inigualável,
Que tens o imenso bem de ter cabelos tais,
E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbável,
Entre o rumor banal dos hinos triunfais;Consente que eu aspire esse perfume raro,
Que exalas da cabeça erguida com fulgor,
Perfume que estonteia um milionário avaro
E faz morrer de febre um louco sonhador.
Educar a inteligência é dilatar o horizonte dos seus desejos e das suas necessidades.
Doente
Que negro mal o meu! estou cada vez mais rouco!
Fogem de mim com asco as virgens d’olhar cálido…
E os velhos, quando passo, vendo-me tão pálido,
Comentam entre si: – coitado, está por pouco!…Por isso tenho ódio a quem tiver saúde,
Por isso tenho raiva a quem viver ditoso,
E, odiando toda a gente, eu amo o tuberculoso.
E só estou contente ouvindo um alaúde.Cada vez que me estudo encontro-me diferente,
Quando olham para mim é certo que estremeço;
E vai, pensando bem, sou, como toda a gente,
O contrário talvez daquilo que pareço…Espírito irrequieto, fantasia ardente,
Adoro como Poe as doidas criações,
E se não bebo absinto é porque estou doente,
Que eu tenho como ele horror às multidões.E amando doudamente as formas incompletas
Que às vezes não consigo, enfim, realizar,
Eu sinto-me banal ao pé dos mais poetas,
E, achando-me incapaz, deixo de trabalhar…São filhos do meu tédio e duma dor qualquer
Meus sonhos de neurose horrivelmente histéricos
Como as larvas ruins dos corpos cadavéricos,
Crença e Intolerância
A necessidade de fé não foi absolutamente provocada pelas religiões; foi ela, ao contrário, que as suscitou. As divindades não fazem mais do que fornecer um objecto ao nosso desejo de crer. Desde que ele se desvia das divindades, o homem entrega-se a uma fé qualquer, quimeras políticas, sortilégios ou feitiços. (…) Uma das mais constantes características gerais das crenças é a sua intolerância. Ela é tanto mais intransigente quanto mais forte é a crença. Os homens dominados por uma certeza não podem tolerar aqueles que não a aceitam.
O amor romântico, tanto na pornografia quanto na vida real, é a mítica celebração da negação feminina. Para uma mulher, o amor é definido como sua boa vontade para se submeter a sua própria aniquilação… A prova de amor é que ela está disposta a ser destruída por aquele que ela ama, pelo seu bem. Para as mulheres, o amor é sempre auto-sacrifício, sacrifício de sua identidade, desejo e integridade de seu corpo; para que satisfaça e se redima diante da masculinidade de seu amado.
Acto ou qualquer outra Coisa
Acto ou qualquer outra coisa. Eu sei, aquela mulher
tão tranquila
vendo da janela do quarto o porto
vendo dos barcos o fumo rente aos mastros
eu seiessa mulher bem podia ter o nome quando
por detrás da janela observa
outras coisas que não são barcos e mastros.Talvez os homenzinhos de azul despertem seus desejos
ou só o azul desbotado, mas não
não nessa janela nesse porto de cidade que não sei
e ela sabeenvolta no vestido, ruivo o cabelo,
envolta nas madeiras da portada.
O chão deve ranger sob os seus pés.
É um estranho desejo buscar o poder e perder a liberdade.
O que é vertigem? Medo de cair? Mas porque temos vertigem num mirante cercado por uma balaustra sólida? Vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio debaixo de nós, que nos atrae e nos envolve, é o desejo da queda do qual nos defendemos aterrorizados.
Quando o desejo é prevenido, o gozo é nulo.
N. H.
Tu não és de Romeu a doce amante,
A triste Julieta, que suspira,
Solto o cabelo aos ventos ondeante,
Inquietas cordas de suspensa lira.Não és Ofélia, a virgem lacrimante,
Que ao luar nos jardins vaga e delira,
E é levada nas águas flutuante,
Como em sonho de amor que cedo expira.És a estátua de mármore de rosa;
Galatéia acordando voluptuosa
Do grego artista ao fogo de mil beijos…És a lânguida Júlia que desmaia,
És Haidéia nos côncavos da praia;
Fosse eu o Dom João dos teus desejos!…
O Desejo é Fruto de um Conhecimento Insuficiente
Não existe nada mais estranho e espinhoso do que a relação entre pessoas que só se conhecem de vista – que diariamente, mesmo hora a hora, se encontram, se observam e que têm assim de manter, sem cumprimenros e sem palavras, a aparência de desconhecimento indiferente, devido ao rigor dos costumes ou a caprichos pessoais. Entre elas existe inquietação e curiosidade exacerbada, a histeria da necessidade insatisfeita, anormalmente recalcada, de conhecimento e comunicação e sobretudo também uma forma de consideração tensa. Pois o ser humano ama e respeita o outro ser humano enquanto não está em posição de o julgar e o desejo é produto de um conhecimento insuficiente.
A Sabedoria pelo Exemplo
Nunca digas que és filósofo – e coíbe-te o mais possível de falar por máximas a pessoas vulgares. Pratica antes o que prescrevem as máximas. Por exemplo: não digas num festim como se deve comer, mas antes come como se deve comer. Que te lembres, em boa hora, como agia Sócrates: sempre fugindo da ostentação, acontecia que, quando pessoas o procuravam para serem conhecidas de filósofos, ele próprio tecia o elogio dos recém-chegados, e aos filósofos os apresentava, tal era o seu desejo de que não dessem por ele.
Se, entre pessoas vulgares, a conversa incidir sobre esta ou aquela máxima, mantém-te em silêncio sempre que possas. Pois, caso contrário, um grande risco podes correr: vomitar de súbito o que ainda não digeriste. E se alguém te disser «Tu nada sabes», e caso não te sintas ofendido por tal despropósito, que saibas começas a ser filósofo. Porque não é restituindo aos pastores a erva comida que as ovelhas lhes provam aquilo que ingeriram. Uma só coisa é verdadeira: uma vez que as ovelhas digeriram o pasto, elas oferecem ao exterior unicamente a lã e o leite. Assim, pois, não ostentes opiniões, através de máximas, entre pessoas vulgares: melhor será que lhes mostres,
Não é medo, nem desejo, é um tumulto interior, incompreensível, que ameaça rasgar-me o peito, que me sufoca!