A perfeição, para a mulher, reside no nascimento: de si própria ou de outro ser de si. Para o homem a perfeição reside na morte.
Passagens de Casimiro de Brito
81 resultadosO Ofício
Escrevo para sentir nas veias
o voo da pedra.Antecipação da paz
neste país de granadas
moldadas
no silêncio dos frutos.Escrevo como quem escava
no bojo da sombra
um mar de claridade.Pedras vivas de possibilidade
as palavras levantam
o crime, os pássaros do pântanoEscrevo
no grande espaço obscuro
que somos e nos inunda.
Quem Falou em Crime?
Crime quem falou em crime
somos todos irmãos todos a mesma
carne incendiadaQuando houver um crime
o primeiro
todos seremos criminososAgora porém somos vivos e amamos
do nascimento à morteCrime se o há já nos corria nas veias
quando éramos obscuros como o ventre
que nos concebeuNão há veias que transbordem
neste corpo flexível
que nos eterniza
Amar é Raro
Amar é dar, derramar-me num vaso que nada retém e sou um fio de cana por onde circulam ventos e marés. Amar é aspirar as forças generosas que me rodeiam, o sol e os lumes, as fontes ubérrimas que vêm do fundo e do alto, água e ar, e derramá-las no corpo irmão, no cadinho que tudo guarda e transforma para que nada se perca e haja um equilíbrio perfeito entre o mesmo e o outro que tu iluminas. Dar tudo ao outro, dar-lhe tanta verdade quanta ele possa suportar, e mais e mais; obrigar o outro a elevar-se a um grau superior de eminência, fulguração, mas não tanto que o fira ou destrua em overdose que o leve a romper o contrato — o difícil equilíbrio dos amantes! Amar é raro porque poucos somos capazes de respirar as vastas planícies com a metade do seu pulmão; e amar é raro porque poucos aceitam a presença do seu gémeo, a boca insaciável de um irmão que todos os dias o vento esculpe e destrói.
Ah, o amor! Esta luta mortal! Cuidar de nós é enterrar definitivamente o eu e o tu que um dia fomos.
Vida Sempre
Entre a vida e a morte há apenas
o simples fenómeno
de uma subtil transformação. A morte
não é morte da vida.
A morte não é inação, inutilidade.
A morte é apenas a face obscura,
mínima, em gestação
de uma viagem que não cessa de ser. Aventura
prolongada
desde o porão do tempo. Projectando-se
nas naves inconcebíveis do futuro.A morte não é morte da vida: apenas
novas formas de vida. Nova
utilidade. Outro papel a desempenhar
no palco velocíssimo do mundo. Novo ser-se (comércio
do pó) e não se pertencer.
Nova claridade, respiração, naufrágio
na maquina incomparável do universo.
A sabedoria humana. Uma gota de água no oceano da sabedoria universal.
O amor? Sabemos de ciência tão certa (esse instinto) que vai morrer que levamos a vida inteira a polir a pedra da sua memória.
A suprema condenação não é a morte, símbolo e princípio da errância infinita, mas a sua impossibilidade.
O amor é quase impossível. Terá de ser límpido, fecundo e desinteressado. De ambos os lados.
Quem sabe amanhã o que foi hoje, hoje o que será amanhã? Espuma à tona de água.
Dizem uns que perderam o mundo, outros que nele se perderam, como se alguém alguma vez tivesse agarrado o fio desta meada.
Vocação masoquista da natureza: consentiu que o vírus humano a invadisse e sobrevivesse.
O homem. Um louco desfeito pelo brinquedo que ele inventou: a História.
Olhasses tu o mundo na perspectiva da rã ou da relva e serias tão humilde e discreto como elas.
O belo? Início do terrível.
Do Amor e da Morte
Temos lábios tenros para o amor
dentes afiados para a morteConcebemos filhos para o amor
para a guerra os mandamos para a morteLevantamos casas para o amor
cidades bombardeamos para a mortePlantamos a seara para o amor
racionamos o trigo para a morteFlorimos atalhos para o amor
rasgamos fronteiras para a morteEscrevemos poemas para o amor
lavramos escrituras para a morteO amor e a morte
somos
Adormecem os que triunfam. Adormecem ou são aniquilados pela bárbara irrupção dos que na sombra encarnam o vigor nascente e necessário para que o espírito do mundo se cumpra.
Não é o silêncio quando silenciamos com esse que amamos.
A beleza mais discreta não responde nem interroga.