Textos sobre Vez de José Saramago

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Textos de vez de José Saramago. Leia este e outros textos de José Saramago em Poetris.

Deus Precisa de Companhia

A minha proposição inicial, que me atrevo a considerar indiscutível, é de que Deus criou o universo porque «se sentia» só. Em todo o tempo antes, isto é, desde que a eternidade começara, «tinha estado» só, mas, como não «se sentia» só, não necessitava inventar uma coisa tão complicada como é o universo. Com o que Deus não contara é que, mesmo perante o espectáculo magnífico das nebulosas e dos buracos negros, o tal sentimento de solidão persistisse em atormentá-lo. Pensou, pensou, e ao cabo de muito pensar fez a mulher, «que não era à sua imagem e semelhança». Logo, tendo-a feito, viu que era bom. Mais tarde, quando compreendeu que só se curaria definitivamente do mal de estar só deitando-se com ela, verificou que era ainda melhor. Até aqui tudo muito próprio e natural, nem era preciso ser-se Deus para chegar a esta conclusão. Passado algum tempo, e sem que seja possível saber se a previsão do acidente biológico já estava na mente divina, nasceu um menino, esse sim, «à imagem e semelhança de Deus». O menino cresceu, fez-se rapaz e homem. Ora, como a Deus não lhe passou pela cabeça a simples ideia de criar outra mulher para a dar ao jovem,

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O Que é a Inspiração?

Eu não sei o que é a inspiração. Mas também a verdade é que às vezes nós usamos conceitos que nunca paramos a examinar. Vamos lá a ver: imaginemos que eu estou a pensar determinado tema e vou andando, no desenvolvimento do raciocínio sobre esse tema, até chegar a uma certa conclusão. Isto pode ser descrito, posso descrever os diversos passos desse trajecto, mas também pode acontecer que a razão, em certos momentos, avance por saltos; ela pode, sem deixar de ser razão, avançar tão rapidamente que eu não me aperceba disso, ou só me aperceba quando ela tiver chegado ao ponto a que, em circunstâncias diferentes, só chegaria depois de ter passado por todas essas fases.
Talvez, no fundo, isso seja inspiração, porque há algo que aparece subitamente; talvez isso possa chamar-se também intuição, qualquer coisa que não passa pelos pontos de apoio, que saltou de uma margem do rio para a outra, sem passar pelas pedrinhas que estão no meio e que ligam uma à outra. Que uma coisa a que nós chamamos razão funcione desta maneira ou daquela, que funcione com mais velocidade ou que funcione de forma mais lenta e que eu posso acompanhar o próprio processo,

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A Racionalidade Irracional

Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do que a razão a nossa espécie. E o instinto serve melhor os animais porque é conservador, defende a vida. Se um animal come outro, come-o porque tem de comer, porque tem de viver; mas quando assistimos a cenas de lutas terríveis entre animais, o leão que persegue a gazela e que a morde e que a mata e que a devora, parece que o nosso coração sensível dirá «que coisa tão cruel». Não: quem se comporta com crueldade é o homem, não é o animal, aquilo não é crueldade; o animal não tortura, é o homem que tortura. Então o que eu critico é o comportamento do ser humano, um ser dotado de razão, razão disciplinadora, organizadora, mantenedora da vida, que deveria sê-lo e que não o é; o que eu critico é a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna maligno.

Aquela ideia que temos da esperança nas crianças, nos meninos e nas meninas pequenas, a ideia de que são seres aparentemente maravilhosos, de olhares puros, relativamente a essa ideia eu digo: pois sim, é tudo muito bonito, são de facto muito simpáticos,

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A História da Humanidade é um Desastre Contínuo

A história da humanidade é um desastre contínuo. Nunca houve nada que se parecesse com um momento de paz. Se ainda fosse só a guerra, em que as pessoas se enfrentam ou são obrigadas a se enfrentar… Mas não é só isso. Esta raiva que no fundo há em mim, uma espécie de raiva às vezes incontida, é porque nós não merecemos a vida. Não se percebeu ainda que o instinto serve melhor aos animais do que a razão serve ao homem. O animal, para se alimentar, tem que matar outro animal. Mas nós não, matamos por prazer, por gosto.

. Paulo (2008)’

O País é Pequeno e a Gente que nele Vive também não é Grande

Em tempos disse que Portugal estava culturalmente morto. Talvez o tenha dito em determinado momento, mas também o diria hoje porque Portugal não tem ideias de futuro, nenhuma ideia do futuro português, nem uma ideia que seja sua, e vai navegando ao sabor da corrente. A cultura, apesar de tudo, tem sobrevivido e é aquilo que pode dar do país uma imagem aberta e positiva em todos os aspectos, seja no cinema, na literatura ou na arte – temos grandes pintores que andam espalhados pelo mundo. Mas o Almeida Garrett definiu-nos de uma vez para sempre e de uma maneira que se tem de reconhecer que é uma radiografia de corpo inteiro: «O país é pequeno e a gente que nele vive também não é grande.» É tremenda esta definição, mas se tivermos ocasião de verificar, desde o tempo do Almeida Garrett e, projectando para trás, efectivamente o país é pequeno (…), mas o que está em causa não é o tamanho físico do país mas a dimensão espiritual e mental dos seus habitantes.

Produzimos uma Cultura de Devastação

Todos os anos exterminamos comunidades indígenas, milhares de hectares de florestas e até inúmeras palavras das nossas línguas. A cada minuto extinguimos uma espécie de aves e alguém em algum lugar recôndito contempla pela última vez na Terra uma determinada flor. Konrad Lorenz não se enganou ao dizer que somos o elo perdido entre o macaco e o ser humano. Somos isso, uma espécie que gira sem encontrar o seu horizonte, um projecto por concluir. Falou-se bastante ultimamente do genoma e, ao que parece, a única coisa que nos distancia na realidade dos animais é a nossa capacidade de esperança. Produzimos uma cultura de devastação baseada muitas vezes no engano da superioridade das raças, dos deuses, e sustentada pela desumanidade do poder económico. Sempre me pareceu incrível que uma sociedade tão pragmática como a ocidental tenha deificado coisas abstractas como esse papel chamado dinheiro e uma cadeia de imagens efémeras. Devemos fortalecer, como tantas vezes disse, a tribo da sensibilidade…

Abordar um Texto Poético

Abordar um texto poético, qualquer que seja o grau de profundidade ou amplitude da leitura, pressupõe, e ouso dizer que pressuporá sempre, uma certa incomodidade de espírito, como se uma consciência paralela observasse com ironia a inanidade relativa de um trabalho de desocultação que, estando obrigado a organizar, no complexo sistema capilar do poema, um itinerário contínuo e uma univocidade coerente, ao mesmo tempo se obriga a abandonar as mil e uma probabilidades oferecidas pelos outros itinerários, apesar de estar ciente de antemão de que só depois de os ter percorrido a todos, a esses e àquele que escolheu, é que acederia ao significado último do texto, podendo suceder que a leitura alegadamente totalizadora assim obtida viesse só a servir para acrescentar à rede sanguínea do poema uma ramificação nova, e impor portanto a necessidade de uma nova leitura. Todos carpimos a sorte de Sísifo, condenado a empurrar pela montanha acima uma sempiterna pedra que sempiternamente rolará para o vale, mas talvez que o pior castigo do desafortunado homem seja o de saber que não virá a tocar nem a uma só das pedras ao redor, inúmeras, que esperam o esforço que as arrancaria à imobilidade.
Não perguntamos ao sonhador por que está sonhando,

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Somos Irracionais

No meu tempo de escola primária, algumas crédulas e ingénuas pessoas, a quem dávamos o respeitoso nome de mestres, ensinaram-me que o homem, além de ser um animal racional, era, também, por graça particular de Deus, o único que de tal fortuna se podia gabar. Ora, sendo as primeiras lições aquelas que mais perduram no nosso espírito, ainda que, muitas vezes, ao longo da vida, julguemos tê-las esquecido, vivi durante muitos anos aferrado à crença de que, apesar de umas tantas contrariedades e contradições, esta espécie de que faço parte usava a cabeça como aposento e escritório da razão. Certo era que o pintor Goya, surdo e sábio, me protestava que é no sono dela que se engendram os monstros, mas eu argumentava que, não podendo ser negado o surgimento dessas avantesmas, tal só acontecia quando a razão, pobrezinha, cansada da obrigação de ser razonável, se deixava vencer pela fadiga e mergulhava no esquecimento de si própria. Chegado agora a estes dias, os meus e os do mundo, vejo-me diante de duas probabilidades: ou a razão, no homem, não faz senão dormir e engendrar monstros, ou o homem, sendo indubitavelmente um animal entre os animais, é, também indubitavelmente, o mais irracional de todos eles.

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