Poemas Interrogativos de Eugénio de Andrade

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Surdo, Subterrâneo Rio

Surdo, subterrâneo rio de palavras
me corre lento pelo corpo todo;
amor sem margens onde a lua rompe
e nimba de luar o prĂłprio lodo.

Correr do tempo ou sĂł rumor do frio
onde o amor se perde e a razĂŁo de amar
– surdo, subterrâneo, impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?

Nocturno a Duas Vozes

— Que posso eu fazer
senĂŁo beber-te os olhos
enquanto a noite
nĂŁo cessa de crescer?

— Repara como sou jovem,
como nada em mim
encontrou o seu cume,
como nenhuma ave
poisou ainda nos meus ramos,
e amo-te,
bosque, mar, constelação.

— Não tenhas medo:
nenhum rumor,
mesmo o do teu coração,
anunciará a morte;
a morte
vem sempre doutra maneira,
alheia
aos longos, brancos
corredores da madrugada.

— Não é de medo
que tremem os meus lábios,
tremo por um fruto de lume
e solidĂŁo
que Ă© todo o oiro dos teus olhos,
toda a luz
que meus dedos tĂŞm
para colher na noite.

— Vê como brilha
a estrela da manhĂŁ,
como a terra
Ă© sĂł um cheiro de eucaliptos,
e um rumor de água
vem no vento.

— Tu és a água, a terra, o vento,
a estrela da manhĂŁ Ă©s tu ainda.

— Cala-te, as palavras doem.
Como dĂłi um barco,
como dói um pássaro
ferido
no limiar do dia.

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As palavras

SĂŁo como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incĂŞndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vĂŞm, cheias de memĂłria.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas sĂŁo de luz
e sĂŁo a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraĂ­sos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Poema Ă  MĂŁe

No mais fundo de ti,
eu sei que traĂ­, mĂŁe

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, Ă s vezes, as palavras que te digo
sĂŁo duras, mĂŁe,
e o nosso amor Ă© infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez nĂŁo enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mĂŁe!

Olha — queres ouvir-me? —
Ă s vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tĂŁo brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa

no meio de um laranjal…

Mas — tu sabes — a noite é enorme,

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Que Diremos Ainda?

Vê como de súbito o céu se fecha
sobre dunas e barcos,
e cada um de nĂłs se volta e fixa
os olhos um no outro,
e como deles devagar escorre
a Ăşltima luz sobre as areias.

Que diremos ainda? SerĂŁo palavras,
isto que aflora aos lábios?
Palavras?, este rumor tĂŁo leve
que ouvimos o dia desprender-se?
Palavras, ou luz ainda?

Palavras, nĂŁo. Quem as sabia?
Foi apenas lembrança doutra luz.
Nem luz seria, apenas outro olhar.

Rosto Afogado

Para sempre um luar de naufrágio
anunciará a aurora fria.
Para sempre o teu rosto afogado,
entre retratos e vendedores ambulantes,
entre cigarros e gente sem destino,
flutuará rodeado de escamas cintilantes.

Se me pudesse matar,
seria pela curva doce dos teus olhos,
pela tua fronte de bosque adormecido,
pela tua voz onde sempre amanhecia,
pelos teus cabelos onde o rumor da sombra
era um rumor de festa,
pela tua boca onde os peixes se esqueciam
de continuar a viagem nupcial.
Mas a minha morte Ă© este vaguear contigo
na parte mais débil do meu corpo,
com uma espinha de silĂŞncio
atravessada na garganta.

Não sei se te procuro ou se me esqueço
de ti quando acaso me debruço
nuns olhos subitamente acesos
ao dobrar de uma esquina,
na boca dos anjos embriagados
de tanta solidĂŁo bebida pelos bares,
nas mĂŁos levemente adolescentes
poisadas na indolĂŞncia dos joelhos.
Quem me dirá que não é verdade
o teu rosto afogado, o teu rosto perdido,
de sombra em sombra, nas ruas da cidade?

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Pequena Elegia de Setembro

NĂŁo sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.

Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas Ăşltimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.

Que mĂşsica escutas tĂŁo atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou Ă© dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
Dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a mĂşsica cesse
e tu nĂŁo possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memĂłria.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tĂŁo alheia
que nem dás por mim.