Poemas sobre Negros de Fernando Namora

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Poemas de negros de Fernando Namora. Leia este e outros poemas de Fernando Namora em Poetris.

Profecia

Nem me disseram ainda
para o que vim.
Se logro ou verdade,
se filho amado ou rejeitado.
Mas sei
que quando cheguei
os meus olhos viram tudo
e tontos de gula ou espanto
renegaram tudo
— e no meu sangue veias se abriram
noutro sangue…
A ele obedeço,
sempre,
a esse incitamento mudo.
Também sei
que hei-de perecer, exangue,
de excesso de desejar;
mas sinto,
sempre,
que não posso recuar.

Hei-de ir contigo
bebendo fel, sorvendo pragas,
ultrajado e temido,
abandonado aos corvos,
com o pus dos bolores
e o fogo das lavas.
Hei-de assustar os rebanhos dos montes
ser bandoleiro de estradas.
— Negro fado, feia sina,
mas não sei trocar a minha sorte!

Não venham dizer-me
com frases adocicadas
(não venham que os não oiço)
que levo caminho errado,
que tenho os caminhos cerrados
à minha febre!
Hei-de gritar,
cair, sofrer
— eu sei.
Mas não quero ter outra lei,
outro fado, outro viver.
Não importa lá chegar…

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Marketing

Aqui a meu lado o bom cidadão
escolheu Sagres
que é tudo tudo cerveja
a pausa que refresca
a longa pausa de um longo cigarro King Size.
atenção ao marketing.
Eu não gosto de cerveja
mas tenho de gostar que os outros gostem de cerveja
sobretudo da Sagres
para não contrariar os fabricantes de cerveja.
atenção ao marketing.
ninguém contraria os fabricantes da Opel e da Super
[Silver
nem os fabricantes de alcatifas para panaceias
nem as panaceias nem os códigos e os édredons macios
nem as mensagens de natal dos estadistas
nem os negociantes de armas da Suiça
nem o homem da capa negra que virou costas ao
[Palmolive.

[…]
Sagres é uma boa cerveja
e eu acabarei por gostar da Sagres
como gosto do Rexina.
Sagres é a pausa que refresca e tem vitaminas
todas as bebidas da televisão têm vitaminas
mesmo as do programa literário que é detergente
e eu uso-as e sou um cidadão perfeito
e até já consigo adormecer sem hipnóticos
depois de tomar o Tofa descafeínado
e no Verão visto calções de banho de fibras sintéticas
para me banhar na Torralta
cidadão perfeito perfeitamente bronzeado com o Ambre
[Solaire.

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Terra – 3

Eles subiram o monte com o povo arrebanhado
e padre-nossos nos lábios.
Eles subiram o monte e eram negros, grandiosos e medonhos.
Vinham de longe e diziam duma verdade nos lábios firmes e finos.
Vinham de longe, de Missões do cabo do mundo;
– da África? dos Brasis? – vinham de longe…
E ficou aquela cruz branca e esguia
erguida na serra.
Sermões na igreja, comunhão geral
e procissão na rua.
Cristo, na cruz do alto, protegendo a freguesia – Hosana!
Terra e gente ficaram santos nesse dia – Hosana!
Hoje, todos sentem aqueles olhos parados lá do cimo
– caminheiros da serra, viajante da estrada –
todos sentem os olhos lá do cimo
– olhar imóvel e indiferente
daqueles que subiram o monte.

Nocturno

Uma casa navega no tempo
como um barco subindo o rio
Por fim sem marinhagem por fim sem mastreação.
Por fim ancorada nas janelas exorbitadas
onde as luzes são paisagens lunares
e o silêncio tem um perfil negro.
Por fim ancorada nas abordagens sem presas.

Ancorada a vedes: abrigo de cães.

Um Segredo

Meu pai tinha sandálias de vento
só agora o sei.
Tinha sandálias de vento
e isto nem sequer é uma maneira de dizer
andava por longe os olhos fugidos a expressão em
[nenhures
com as miraculosas instantaneidades que nos fazem
[estar em todos os sítios.

Andava por longe meu pai sonhando errando vadiando
mas toda a sua ausência era
o malogro de o ser
só agora o sei.
Andava por longe ou sentíamo-lo longe
vem dar no mesmo
e no entanto víamo-lo sempre
ali plantado de imobilidade absorta
no cepo de carvalho raiado de negro
a que o caruncho comera o miolo
como as lagartas esvaziam as maçãs
estranhamente quieto murcho resignado
no seu estranho vadiar
os olhos aguados numa tristeza que hoje me dói
como um apelo perdido uma coragem abortada.
Ausência era tão de mágoa urdida tão de fracasso
[tingida
ausência era
altiva e desolada altiva e triste sobretudo triste
tristeza sim tristeza solene e irremediada
só agora o sei.

Às vezes parecia-me uma águia que atravessa os ares
sulco azul
que nada distingue do azul onde foi sulcado
e por isso nem é águia nem ao menos
o que do seu voo resta para que
o sonho se faça real.

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Pilotagem

E os meus olhos rasgarão a noite;

E a chuva que vier ferir-me nas vidraças
Compreenderá, então, a sua inutilidade;

E todos os sinos que alimentavam insónias
hão-de repetir as horas mortas
só para os ouvidos da torre;

E os outros ruídos abafar-se-ão no manto negro da noite;

E a mão alva que me apontava os nortes
e ficou debruçada no postigo
amortalhada pela neve
reviverá de novo;

E os meus braços se erguerão transfigurados
para o abraço virgem dos teus braços
que andava perdido, sem dar fé deste seu reino;

E todas as luzes que tresnoitaram os homens
apagar-se-ão;

E o silêncio virá cheio de promessas
que não se cansaram na viagem;

E todos os povos de Babel
com as riquezas que há no mundo
virão festejar a paz em minha honra;

E os caminhos se abrirão
para os homens que seguirem de mãos dadas:

O sangue derramado de Cristo
terá finalmente significação,
e da inútil cruz do martírio
se erguerá o pendão da vitória;

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