Passagens de Fernando Namora

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Poema para Iludir a Vida

Tudo na vida está em esquecer o dia que passa.
Não importa que hoje seja qualquer coisa triste,
um cedro, areias, raízes,
ou asa de anjo
caída num paul.
O navio que passou além da barra
já não lembra a barra.
Tu o olhas nas estranhas águas que ele há-de sulcar
e nas estranhas gentes que o esperam em estranhos
[portos.
Hoje corre-te um rio dos olhos
e dos olhos arrancas limos e morcegos.
Ah, mas a tua vitória está em saber que não é hoje
[o fim
e que há certezas, firmes e belas,
que nem os olhos vesgos
podem negar.
Hoje é o dia de amanhã.

Lugares com Ecos do Passado

Tanto ou mais que as pessoas, os lugares vivem e morrem. Com uma diferença: mesmo se já mortos, os lugares retêm a vida que os animou. No silêncio, sentimos-lhes os ouvidos vigilantes ou o rumor infatigável dos ecos ensurdecidos.

A Mais Bela Noite do Mundo

Hoje,
será o fim!

Hoje
nem este falso silêncio
dos meus gestos malogrados
debruçando-se
sobre os meus ombros nus
e esmagados!

Nem o luar, pano baço de cenário velho,
escutando
a minha prisão de viver
a lição que me ditavam:
– Menino! acende uma vela na tua vida,
que o sol, a luz e o ar
são perfumes de pecado.
Tem braços longos e tentadores – o dia!

– Menino! recolhe-te na sombra do meu regaço
que teus pés
são feitos de barro e cansaço!

(Era esta a voz do papão
pintado de belo
na máscara de papelão).

Eram inúteis e magoadas as noites da minha rua…
Noites de lua
que lembravam as grilhetas
da minha vida parada.

– Amanhã,
terás os mestres, as aulas, os amigos e os livros
e o espectáculo da morgue
morando durante dias
nos teus sentidos gorados.

Amanhã,
será o ultrapassar outra curva
no teu caminho destinado.

(Era esta a voz do papão
que acendia a vela,

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Derramado

Raro e vazio dia.
Calmo e velho dia.
Os membros lassos debruados deste cansaço sem porquê.

Raro e vazio dia,
assim inteiro e implacável
na solidão grave e trágica do meu quarto nu.

Perdido, perdido, este vagabundear dos meus olhos
sobre os livros fechados e decorados,
sobre as árvores roídas,
sobre as coisas quietas, quietas…

Raro e vazio dia
na minha boca pálida e pouca,
sem uma praga para quebrar a magia do ópio!

Coisas, Pequenas Coisas

Fazer das coisas fracas um poema.

Uma árvore está quieta,
murcha, desprezada.
Mas se o poeta a levanta pelos cabelos
e lhe sopra os dedos,
ela volta a empertigar-se, renovada.
E tu, que não sabias o segredo,
perdes a vaidade.
Fora de ti há o mundo
e nele há tudo
que em ti não cabe.

Homem, até o barro tem poesia!
Olha as coisas com humildade.

O Casulo

No casulo:
uma mesa quatro cinco estantes
livros por centenas ou milhares
tijolos de papel onde as traças
acasalam e o caruncho espreita
sólidas muralhas de elvezires onde
a rua não penetra
uma máquina de escrever olivetti
com a tinta acumulada nas letras mais redondas
cachimbos barros estanhos medalhas fotos
bonecos marafonas lembranças
retratos alguns gente ida ou vinda
gorros usbeques gorros bailundos leques
japoneses arpões açorianos sinos de não sei donde
ou sei esperem sinos da tróica em natais nocturnos
marfins africanos óleos desenhos calendários
feitiços da Baía a mão a fazer figas
tudo do melhor contra raios coriscos mau olhado
retratos dizia Jorge o de Salvador Júlio o da Morgadinha
Berglin o cientista Kostas o dramaturgo
e outros e outros
Afonso Duarte o das ossadas pórtico
destas lamúrias o sorriso sibilino e rugoso
que matou no Nemésio o bicho harmonioso
mais de agora o Umberto Eco barbudo
a filtrar-me com medievismo os gestos tontos
e outros e outros
suecos brasileiros romenos gregos
e ainda aqueles em que a Zita foi escrevendo
a minha sina de andarilho
Tolstoi patrono obcecante um pastor a tocar
pífaro algures nos Balcãs sinais da Bulgária da Polónia
da Finlândia sinais de tantas partes onde
fui um outro de biografia aberrante
sinais da minha terra também
a minha de verdade e não as outras
a que chamam minhas por distraído palpite
o Lima de Freitas num candeeiro alumiando
a mulher verde-azul em casas assombrada
mestre Marques d’Oliveira num esquisso
de alto coturno a carta de Abel Salazar
que o sol foi comendo não se lendo já
o que a censura omitiu
aqui a China também representada
um ícone de Sófia as plácidas cabras
do Calasans o tinteiro de quando
se usavam plumas roubaram-se o missal do Cicogna
um almofariz para esferográficas furta-cores
a caixa de madeira floreada veio da Rússia
deu-ma a Tatiana sob promessa (cumprida)
de a pôr bem em frente das minhas divagações
anémonas nórdicas da Anne
miosótis búlgaros da Rumiana
o poster é alemão Friede den Kindern
nunca pedi a ninguém a decifração
dois horóscopos face a face
cangaceiros nordestinos
o menino ajoelhado do Tó Zé
num gesso já sem braços nem rosto
objectos objectos o pote tem as armas de não lembro
[quem
embora o nome que venha por de cima
seja o meu e eu também no óleo carrancudo
do Zé Lima há um ror de anos
melhor não saber quantos
o molde para o bronze é um perfil onde
desenganadamente me reconheço
tanta bugiganga tanto bazar tanto papel
branco ou impresso uma faca para
apunhalar alguém a cassete de poesias na voz
da Maria Vitorino as esculturas astecas
do Miguel medalhas medalhas outra vez lembranças
agendas sem préstimo canetas gastas mais papéis
letras miúdas ou letras farfalhudas
depende da ocasião
um livro de filigrana
as paredes mal se vêem estantes copiosas já disse
quadros em demasia e ainda
as rendas de minha mãe em molduras destoadas
ela no retrato de cenho descontente
fitando-me até ao miolo dos desvairos
o bordão de régulo justiceiro
obliquando no trono de cactos
amuletos africanos o mata-borrão que foi
de um pide deu-mo o fuzileiro no pós-Abril
uma bela cabeça de mulher do João Fragoso
jarras de sacristia candeias de cobre
sem pavio um samovar de madeira um samurai de
[veludo
os painéis de São Vicente em miniatura
a áurea trombeta do troféu lusíada
de parceria com o Manuel Cargaleiro
áureos pesados troféus o marasmo branco
de Pavia na tela sem idade
livros livros os correios não páram
de mos trazer para maior sufocação
cartas a granel por responder relógio não há mas ouço-o
sem falhar um segundo há cordas cordões medalhas
[medalhões
armas lauréis proibições
perfumes em minaretes levantinos.

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Nome Para Uma Casa

Ossos enxutos de repente as mãos
sobre o repousado peito entrelaçadas
como quem adormeceu
à sombra de uma quieta
e morosa árvore de copa alargada.
Dos olhos direi que abertos
para dentro me parecem
não os verei mais de agitação ansiosa
e húmido afago brandos no seu ferver
de amor avarento agora tão acalmados também
tão de longe observando incrédulos e astuciosos
a escura gente de roda com ladainhas de
abjuradas mágoas.

Julgo ouvir a chuva no tépido pinhal
mas pode ser engano
ainda há pouco o vento limpara o céu anoitecido
por entre o sussuro do lamuriado tédio
alguém se aproxima em bicos dos pés
por entre hortências ou dálias
de ambas minha mãe gostava

as ratazanas heréticas perseguem-se no sótão
como no tempo de não sei quando
os estalidos de madeira seca
no tecto antigo que os bichos mastigam aplicadamente
enquanto as velas agónicas se revezam
uma a uma dançando no sereno rosto que dorme
sem precisar de dormir tão perto o rosto e tão ausente
tão da vida agreste aliviado
as pessoas vão repartindo ais estórias lembranças
vão repartindo haveres e contos largos
enquanto no barco do tempo o morto se afasta
solene e majestático mesmo que o medo
o persiga até ao limite das águas.

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Um Poema Que Se Perdeu

Hoje o dia é um dia chuvoso e triste
amortalhado
Naquela monotonia doente dos grandes dias.

Hoje o dia…
(a pena caiu-me das mãos)

Acabou-se o poema no papel.
Cá por dentro
Continua…

Oh! este marulhar das almas no silêncio!

Poema de Amor

Se te pedirem, amor, se te pedirem
que contes a velha história
da nau que partiu
e se perdeu,
não contes, amor, não contes
que o mar és tu
e a nau sou eu.

E se pedirem, amor, e se pedirem
que contes a velha fábula
do lobo que matou o cordeiro
e lhe roeu as entranhas,
não contes, amor, não contes
que o lobo é a minha carne
e o cordeiro a minha estrela
que sempre tu conheceste
e te guiou — mal ou bem.

Depois, sabes, estou enjoado
desta farsa.
Histórias, fábulas, amores
tudo me corre os ouvidos
a fugir.

Sou o guerreiro sem forças
para erguer a sua espada,
sou o piloto do barco
que a tempestade afundou.

Não contes, amor, não contes
que eu tenho a alma sem luz.

…Quero-me só, a sofrer e arrastar
a minha cruz.

Profecia

Nem me disseram ainda
para o que vim.
Se logro ou verdade,
se filho amado ou rejeitado.
Mas sei
que quando cheguei
os meus olhos viram tudo
e tontos de gula ou espanto
renegaram tudo
— e no meu sangue veias se abriram
noutro sangue…
A ele obedeço,
sempre,
a esse incitamento mudo.
Também sei
que hei-de perecer, exangue,
de excesso de desejar;
mas sinto,
sempre,
que não posso recuar.

Hei-de ir contigo
bebendo fel, sorvendo pragas,
ultrajado e temido,
abandonado aos corvos,
com o pus dos bolores
e o fogo das lavas.
Hei-de assustar os rebanhos dos montes
ser bandoleiro de estradas.
— Negro fado, feia sina,
mas não sei trocar a minha sorte!

Não venham dizer-me
com frases adocicadas
(não venham que os não oiço)
que levo caminho errado,
que tenho os caminhos cerrados
à minha febre!
Hei-de gritar,
cair, sofrer
— eu sei.
Mas não quero ter outra lei,
outro fado, outro viver.
Não importa lá chegar…

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Marketing

Aqui a meu lado o bom cidadão
escolheu Sagres
que é tudo tudo cerveja
a pausa que refresca
a longa pausa de um longo cigarro King Size.
atenção ao marketing.
Eu não gosto de cerveja
mas tenho de gostar que os outros gostem de cerveja
sobretudo da Sagres
para não contrariar os fabricantes de cerveja.
atenção ao marketing.
ninguém contraria os fabricantes da Opel e da Super
[Silver
nem os fabricantes de alcatifas para panaceias
nem as panaceias nem os códigos e os édredons macios
nem as mensagens de natal dos estadistas
nem os negociantes de armas da Suiça
nem o homem da capa negra que virou costas ao
[Palmolive.

[…]
Sagres é uma boa cerveja
e eu acabarei por gostar da Sagres
como gosto do Rexina.
Sagres é a pausa que refresca e tem vitaminas
todas as bebidas da televisão têm vitaminas
mesmo as do programa literário que é detergente
e eu uso-as e sou um cidadão perfeito
e até já consigo adormecer sem hipnóticos
depois de tomar o Tofa descafeínado
e no Verão visto calções de banho de fibras sintéticas
para me banhar na Torralta
cidadão perfeito perfeitamente bronzeado com o Ambre
[Solaire.

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Pelicano

Onda que vais morrendo em nova onda,
mar que vais morrendo noutro mar,
assim a minha vida se desprenda e do meu sumo
escorra a vida para as bocas que se finam
de desejar.

Ó dia que vais escoando como os rios
e empalideces rostos e cabelos,
traze a palavra para a incerteza
dos que vagueiam à deriva;
a bandeira amarela se rasgue
e dos farrapos se gere outra cor.

Ó dia correndo e findando,
some-te lá no cimo da fraga
mas deixa que no teu rasto fique o sangue
anunciando a esperança noutro dia.

Sê como a onda que morre para outra começar.

Intimidade

Que ninguém hoje me diga nada.
Que ninguém venha abrir a minha mágoa,
esta dor sem nome
que eu desconheço donde vem
e o que me diz.
É mágoa.
Talvez seja um começo de amor.
Talvez, de novo, a dor e a euforia de ter vindo ao
[mundo.
Pode ser tudo isso, ou nada disso.
Mas não o afirmo.
As palavras viriam revelar-me tudo.
E eu prefiro esta angústia de não saber de quê.

Terra – 3

Eles subiram o monte com o povo arrebanhado
e padre-nossos nos lábios.
Eles subiram o monte e eram negros, grandiosos e medonhos.
Vinham de longe e diziam duma verdade nos lábios firmes e finos.
Vinham de longe, de Missões do cabo do mundo;
– da África? dos Brasis? – vinham de longe…
E ficou aquela cruz branca e esguia
erguida na serra.
Sermões na igreja, comunhão geral
e procissão na rua.
Cristo, na cruz do alto, protegendo a freguesia – Hosana!
Terra e gente ficaram santos nesse dia – Hosana!
Hoje, todos sentem aqueles olhos parados lá do cimo
– caminheiros da serra, viajante da estrada –
todos sentem os olhos lá do cimo
– olhar imóvel e indiferente
daqueles que subiram o monte.

Terra – 7

Onde ficava o mundo?
Só pinhais, matos, charnecas e milho
para a fome dos olhos.
Para lá da serra, o azul de outra serra e outra serra ainda.
E o mar? E a cidade? E os rios?
Caminhos de pedra, sulcados, curtos e estreitos,
onde chiam carros de bois e há poças de chuva.
Onde ficava o mundo?
Nem a alma sabia julgar.
Mas vieram engenheiros e máquinas estranhas.
Em cada dia o povo abraçava um outro povo.
E hoje a terra é livre e fácil como o céu das aves:
a estrada branca e menina é uma serpente ondulada
e dela nasce a sede da fuga como as águas dum rio.

Alheamento

Meu corpo estiraçado, lânguido, ao logo do leito.

O cigarro vago azulando os meus dedos.

O rádio… a música…

A tua presença que esvoaça
em torno do cigarro, do ar, da música…

Ausência!, minha doce fuga!

Estranha coisa esta, a poesia,
que vai entornando mágoa nas horas
como um orvalho de lágrimas, escorrendo dos vidros
duma janela,

numa tarde vaga, vaga…

Nocturno

Uma casa navega no tempo
como um barco subindo o rio
Por fim sem marinhagem por fim sem mastreação.
Por fim ancorada nas janelas exorbitadas
onde as luzes são paisagens lunares
e o silêncio tem um perfil negro.
Por fim ancorada nas abordagens sem presas.

Ancorada a vedes: abrigo de cães.

Poema da Hora Escoada

Minhas mãos
– duas chamas débeis de vela
unidas no mesmo destino.

Minhas mãos
derretidas em cera
que vai escorrendo,
gota a gota,
ao longo do corpo hirto
da vela moribunda.
Que vai escorrendo,
lenta,
na calmaria falsa e densa
da luz delida e mortuária do meu quarto.

E o livro de Anatomia,
grave e inútil,
aberto em frente.

E todo o mundo,
que me espera
e desespera,
nas páginas inúteis e graves
do livro de Anatomia.

E as horas
morrendo, morrendo,
como uma vela que se vai derretendo
no quarto frio de um morto.

Ai! minhas mãos, minhas mãos
– duas chamas débeis de vela
unidas no mesmo destino!

– Que horas serão?

A vida
é uma vela de corpo hirto
que se vai derretendo, derretendo,
na calmaria falsa e densa
de um quarto de morto.

Aves

ter-te suspensa
do meu lume
na fogosa boca
o ardume
a explodir
tu
ardida e intacta
sonho e nuvem
voz exacta
um soltar
de aves
em pânico
na relva do olhar

Indução

Há em todas as coisas
a marca estranha
da minha presença.

Sons, palavras, imagens,
tudo eu desfiguro e torno falso.

As pessoas, à minha volta,
deslizam vagamente como sonâmbulos
– fantoches ocos de lenda…

Os sons,
se logram atravessar portas e janelas,
partem-se
no lajedo frio dos meus olhos.

Vai-se o sol
Onde o meu pensamento das trevas se poisa.

Oh! as minhas ilusões de claridade!