Poemas sobre Ninguém de Cesare Pavese

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Poemas de ninguém de Cesare Pavese. Leia este e outros poemas de Cesare Pavese em Poetris.

Uma Recordação

Não há homem que consiga deixar uma marca
nela. Todo o passado se dilui num sonho
como uma rua na manhĂŁ e sĂł fica ela.
Se nĂŁo fosse a testa franzida por um momento
pareceria atónita. As maçãs do rosto têm sempre
um sorriso.

Também não se acumulam os dias
no seu rosto, nem alteram o sorriso leve
que irradia sobre todas as coisas. Com uma firmeza dura
faz cada coisa como se fosse a primeira;
no entanto vive-a até ao último momento. O seu corpo
firme abre-se, o olhar recolhido,
a uma voz doce e algo rouca: Ă  voz
dum homem cansado. E nenhum cansaço a toca.

Quando se lhe olha para a boca, semicerra os olhos
à espera: ninguém se arriscaria.
Muitos homens conhecem o seu ambĂ­guo sorriso
ou a sĂşbita ruga. Se homem existiu
que a soube queixosa, humilhada de amor,
paga dia apĂłs dia, ignorando dela
por quem vive hoje.

Caminhando pela rua
sorri sozinha o sorriso mais ambĂ­guo.

Tradução de Carlos Leite

Disciplina

O trabalho começa ao romper do dia. Mas nós começamos,
um pouco antes do romper do dia, a reconhecer-nos
nas pessoas que passam na rua. Ao descobrir os raros
transeuntes, cada um sabe que está sozinho
e que tem sono — perdido no seu próprio sonho,
cada um sabe no entanto que com o dia abrirá os olhos.
Quando a manhĂŁ chega, encontra-nos estupefactos
a fixar o trabalho que agora começa.
Mas já não estamos sozinhos e ninguém mais tem sono
e pensamos com calma os pensamentos do dia
até que o sorriso vem. Com o regresso do sol
estamos todos convencidos. Mas Ă s vezes um pensamento
menos claro — um esgar — surpreende-nos inesperadamente
e voltamos a olhar para tudo como antes do amanhecer.
A cidade clara assiste aos trabalhos e aos esgares.
Nada pode turvar a manhĂŁ. Tudo pode
acontecer e basta levantar a cabeça
do trabalho e olhar. Rapazes que se escaparam
e que ainda nĂŁo fazem nada passam na rua
e alguns até correm. As árvores das avenidas
dĂŁo muita sombra e sĂł falta a erva
entre as casas que assistem imĂłveis.

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