Poemas sobre Possessos de Miguel Torga

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Poemas de possessos de Miguel Torga. Leia este e outros poemas de Miguel Torga em Poetris.

Orfeu Rebelde

Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fĂșria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade do meu sofrimento.

Outros, felizes, sejam os rouxinĂłis…
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que hĂĄ gritos como hĂĄ nortadas,
ViolĂȘncias famintas de ternura.

Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legĂ­tima defesa.
Canto, sem perguntar Ă  Musa
Se o canto Ă© de terror ou de beleza.

Livro de Horas

Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vĂŁo ao leme da nau
Nesta deriva em que vou.

Me confesso
Possesso
De virtudes teologais,
Que sĂŁo trĂȘs,
E dos pecados mortais,
Que sĂŁo sete,
Quando a terra nĂŁo repete
Que sĂŁo mais.

Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas,
E o das ternuras lĂșcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
E luar de charco, Ă  mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raĂ­zes no chĂŁo
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caĂ­do
Do tal CĂ©u que Deus governa;
De ser um monstro saĂ­do
Do buraco mais fundo da caverna.

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