Poemas sobre Deus de Miguel Torga

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Poemas de deus de Miguel Torga. Leia este e outros poemas de Miguel Torga em Poetris.

O Poeta

Triste, lá vai à ronda dos segredos
O maluco que rouba quanto vê.
Branco, do coração aos dedos,
É todo antenas onde apenas lê.

Murcha-lhe nos pés o rosmaninho
E a própria rosa, de o sentir, descora;
Mas é um Deus que passeia o seu caminho
A beber a amargura de quem chora.

Magro, lá passa, e lá se vai consigo
A luz das coisas e a flor de tudo.
É um bruxo lento, tenebroso e antigo,
Pálido, sério, solitário e mudo.

Nasce Mais uma Vez

Nasce mais uma vez,
Menino Deus!
Não faltes, que me faltas
Neste inverno gelado.
Nasce nu e sagrado
No meu poema,
Se não tens um presépio
Mais agasalhado.
Nasce e fica comigo
Secretamente,
Até que eu, infiel, te denuncie
Aos Herodes do mundo.
Até que eu, incapaz
De me calar,
Devasse os versos e destrua a paz
Que agora sinto, só de te sonhar.

História Antiga

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.

Livro de Horas

Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão ao leme da nau
Nesta deriva em que vou.

Me confesso
Possesso
De virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais,
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.

Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas,
E o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído
Do tal Céu que Deus governa;
De ser um monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.

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Natal

Foi tudo tão pontual
Que fiquei maravilhado.
Caiu neve no telhado
E juntou-se o mesmo gado
No curral.

Nem as palhas da pobreza
Faltaram na manjedoira!
Palhas babadas da toira
Que ruminava a grandeza
Do milagre pressentido.
Os bichos e a natureza
No palco já conhecido.

Mas, afinal, o cenário
Não bastou.
Fiado no calendário,
O homem nem perguntou
Se Deus era necessário…
E Deus não representou.