Visio
Eras pálida. E os cabelos,
Aéreos, soltos novelos,
Sobre as espáduas caíam…
Os olhos meio cerrados
De volúpia e de ternura
Entre lágrimas luziam…
E os braços entrelaçados,
Como cingindo a ventura,
Ao teu seio me cingiam…Depois, naquele delírio,
Suave, doce martírio
De pouquíssimos instantes,
Os teus lábios sequiosos,
Frios, trêmulos, trocavam
Os beijos mais delirantes,
E no supremo dos gozos
Ante os anjos se casavam
Nossas almas palpitantes…Depois… depois a verdade,
A fria realidade,
A solidão, a tristeza;
Daquele sonho desperto,
Olhei… silêncio de morte
Respirava a natureza —
Era a terra, era o deserto,
Fora-se o doce transporte,
Restava a fria certeza.Desfizera-se a mentira:
Tudo aos meus olhos fugira;
Tu e o teu olhar ardente,
Lábios trêmulos e frios,
O abraço longo e apertado,
O beijo doce e veemente;
Restavam meus desvarios,
E o incessante cuidado,
E a fantasia doente.E agora te vejo. E fria
Tão outra estás da que eu via
Naquele sonho encantado!
Poemas Longos
657 resultadosEsta Velha Angústia
Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que…,
Isto.Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim…Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo,
Como um Adeus Português
Meu amor, desaparecido no sono como sonho de outro sonho,
meu amor, perdido na música dos versos que faço e recomeço,
meu amor por fim perdido.Nenhuma lâmpada se acende na câmara escura do esquecimento,
onde revelo em banho de prata as imagens que guardo de ti,
imagens que se desfiam na memória de haver corpos,
na memória da alegria que sempre guardamos para dar a alguém,
tremendo de medo, tropeçando de angústia,
enternecidos,
entontecidos,
como aves canoras soltas nos vendavais.Perdi-te no momento certo de perder-te.
Aqui estão os augúrios, além o discernimento.
O amor em surdina desfez-se no seu dizer,
entre versos pobres, um corpo cansado,
e a doença sem fim do desejo mortal.Apagaram-se as luzes. Nunca o vento da indiferença
me abrirá as mãos.
Nunca abdicarei deste quinhão de luz, o meu amor.
E agora vejo bem como as palavras caem,
não valem,
se desfolham e são pisadas por qualquer afirmação da vida,
da vida que não era para nós.
Lisbon Revisited (1926)
Nada me prende a nada.
Quero cinqüenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja –
Definidamente pelo indefinido…
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias.
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.
Não há na travessa achada o número da porta que me deram.Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta – até essa vida…Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.
Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me naufrago;
ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma…
E, no fundo do meu espírito,
Frígida
I
Balzac é meu rival, minha senhora inglesa!
Eu quero-a porque odeio as carnações redondas!
Mas ele eternizou-lhe a singular beleza
E eu turbo-me ao deter seus olhos cor das ondas.II
Admiro-a. A sua longa e plácida estatura
Expõe a majestade austera dos invernos.
Não cora no seu todo a tímida candura;
Dançam a paz dos céus e o assombro dos infernos.III
Eu vejo-a caminhar, fleumática, irritante,
Numa das mãos franzindo um lençol de cambraia!…
Ninguém me prende assim, fúnebre, extravagante,
Quando arregaça e ondula a preguiçosa saia!IV
Ouso esperar, talvez, que o seu amor me acoite,
Mas nunca a fitarei duma maneira franca;
Traz o esplendor do Dia e a palidez da Noite,
É, como o Sol, dourada, e, como a Lua, branca!V
Pudesse-me eu prostar, num meditado impulso,
Ó gélida mulher bizarramente estranha,
E trêmulo depor os lábios no seu pulso,
Entre a macia luva e o punho de bretanha!…VI
Cintila ao seu rosto a lucidez das jóias.
Ao encarar consigo a fantasia pasma;
Ah, o que é aquele Barulho
Ah, o que é aquele barulho
Ah, o que é aquele barulho que vibra no ouvidos
Lá em baixo no vale, a rufar, a rufar?
São apenas os soldados escarlates, amor,
Os soldados que chegam.Ah, o que é aquela luz que vejo tão cintilante e intensa
Lá ao longe, brilhante, brilhante?
Apenas o sol incidindo nas armas, amor,
Enquanto avançam ligeiros.Ah, que estão eles a fazer com todo aquele equipamento,
Que estão eles a fazer esta manhã, esta manhã?
Somente as manobras habituais, amor,
Ou talvez seja um aviso.Ah, por que terão abandonado a estrada ali em baixo,
Por que andam de repente às voltas, às voltas?
Talvez tenham recebido ordens diferentes, amor.
Por que estás de joelhos?Ah, não pararam para o médico cuidar deles,
Não detiveram os cavalos, os cavalos?
Claro, ninguém está ferido, amor,
Nenhum destes soldados.Ah, é o padre de cabelo branco que eles querem,
O padre, não é, não é?
Não, estão a passar ao seu portão, amor,
Sem o irem visitar.
No Crepusculo
Nasce a luz do luar dos derradeiros,
Êrmos, soturnos pincaros sósinhos…
Andam sombras no ar e murmurinhos
E vagidos de luz… e os Pegureiros
Descem, cantando, a encosta dos outeiros…Tangendo amenas frautas amorosas,
Seus vultos, no crepusculo, desmaiam
E assim como os seus canticos, se espraiam
Em ondas de emoção. As fragarosas
Quebradas que o luar beija, misteriosas
Furnas, boccas de terra, murmurantes,
Arvoredos extaticos orando,
Rochedos, na penumbra, meditando,
Desfeitos em ternura, esvoaçantes,
Pairam tambem no espaço comovido,
Das primeiras estrelas já ferido,
Todo em luar e sombra amortalhado…E eu choro sobre um monte abandonado…
E o Phantasma divino da Creança,
Sombra de Anjinho em flor,
Nos longes dos meus olhos aparece,
Como se, por ventura, ele nascesse
Da minha incerta e trémula esperança,
E não da minha firme e eterna dôr!E choro; e alem das lagrimas, eu vejo
Aquele dôce Vulto pequenino,
Em seu leito de morte e soffrimento;
Jesus martirisado, inda Menino…
E é como cinza morte o meu desejo
E como extinta luz meu pensamento!
Não Sou Casado, Senhora
Não sou casado, senhora,
que ainda não dei a mão,
não casei o coração.Antes que vos conhecesse,
sem errar contra vós nada,
uma só mão fiz casada,
sem que mais nisso metesse.
Dou-lhe que ela se perdesse!
solteiros e vossos são
os olhos e o coração.Dizem que o bom casamento
se há de fazer de vontade.
Eu, a vós, a liberdade
vos dei, e o pensamento.
Nisto só me achei contento:
que, se a outrem dei a mão,
dei a vós o coração.Como, senhora, vos vi,
sem palavras de presente
na alma vos recebi,
onde estareis para sempre,
não de palavra somente;
nem fiz mais que dar a mão,
guardando-vos o coração.Casei-me com meu cuidado
e com vosso desejar.
Senhora, não sou casado,
não mo queirais acuitar!
que servir-vos e amar
me nasceu do coração
que tendes em vossa mão.O casar não fez mudança
em meu antigo cuidado,
nem me negou a esperança
do galardão esperado.
Pilotagem
E os meus olhos rasgarão a noite;
E a chuva que vier ferir-me nas vidraças
Compreenderá, então, a sua inutilidade;E todos os sinos que alimentavam insónias
hão-de repetir as horas mortas
só para os ouvidos da torre;E os outros ruídos abafar-se-ão no manto negro da noite;
E a mão alva que me apontava os nortes
e ficou debruçada no postigo
amortalhada pela neve
reviverá de novo;E os meus braços se erguerão transfigurados
para o abraço virgem dos teus braços
que andava perdido, sem dar fé deste seu reino;E todas as luzes que tresnoitaram os homens
apagar-se-ão;E o silêncio virá cheio de promessas
que não se cansaram na viagem;E todos os povos de Babel
com as riquezas que há no mundo
virão festejar a paz em minha honra;E os caminhos se abrirão
para os homens que seguirem de mãos dadas:O sangue derramado de Cristo
terá finalmente significação,
e da inútil cruz do martírio
se erguerá o pendão da vitória;
Eu que me Aguente Comigo
Contudo, contudo,
Também houve gládios e flâmulas de cores
Na Primavera do que sonhei de mim.
Também a esperança
Orvalhou os campos da minha visão involuntária,
Também tive quem também me sorrisse.
Hoje estou como se esse tivesse sido outro.
Quem fui não me lembra senão como uma história apensa.
Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo.Caí pela escada abaixo subitamente,
E até o som de cair era a gargalhada da queda.
Cada degrau era a testemunha importuna e dura
Do ridículo que fiz de mim.Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo com que aparecesse,
Mas pobre também do que, sendo rico e nobre,
Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo.
Sou imparcial como a neve.
Nunca preferi o pobre ao rico,
Como, em mim, nunca preferi nada a nada.Vi sempre o mundo independentemente de mim.
Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas,
Mas isso era outro mundo.
Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja.
O Amor em Visita
Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.Cantar? Longamente cantar.
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas –
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele – imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.Em cada mulher existe uma morte silenciosa.
E enquanto o dorso imagina, sob os dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
– Oh cabra no vento e na urze,
Povo
Povo que lavas no rio,
Que vais às feiras e à tenda,
Que talhas com teu machado
As tábuas do meu caixão,
Pode haver quem te defenda,
Quem turve o teu ar sadio,
Quem compre o teu chão sagrado,
Mas a tua vida, não!Meu cravo branco na orelha!
Minha camélia vermelha!
Meu verde manjericão!
Ó natureza vadia!
Vejo uma fotografia…
Mas a tua vida, não!Fui ter à mesa redonda,
Bebendo em malga que esconda
O beijo, de mão em mão…
Água pura, fruto agreste,
Fora o vinho que me deste,
Mas a tua vida, não!Procissões de praia e monte,
Areais, píncaros, passos
Atrás dos quais os meus vão!
Que é dos cântaros da fonte?
Guardo o jeito desses braços…
Mas a tua vida, não!Aromas de urze e de lama!
Dormi com eles na cama…
Tive a mesma condição.
Bruxas e lobas, estrelas!
Tive o dom de conhecê-las…
Mas a tua vida, não!Subi às frias montanhas,
Pelas veredas estranhas
Onde os meus olhos estão.
Alegria
De passadas tristezas, desenganos
amarguras colhidas em trinta anos,
de velhas ilusões,
de pequenas traições
que achei no meu caminho…,
de cada injusto mal, de cada espinho
que me deixou no peito a nódoa escuraduma nova amargura…
De cada crueldade
que pôs de luto a minha mocidade…
De cada injusta pena
que um dia envenenou e ainda envenena
a minha alma que foi tranquila e forte…
De cada morte
que anda a viver comigo, a minha vida,
de cada cicatriz,
eu fiz
nem tristeza, nem dor, nem nostalgia
mas heróica alegria.Alegria sem causa, alegria animal
que nenhum mal
pode vencer.
Doido prazer
de respirar!
Volúpia de encontrar
a terra honesta sob os pés descalços.Prazer de abandonar os gestos falsos,
prazer de regressar,
de respirar
honestamente e sem caprichos,
como as ervas e os bichos.
Alegria voluptuosa de trincar
frutos e de cheirar rosas.Alegria brutal e primitiva
de estar viva,
feliz ou infeliz
mas bem presa à raíz.
Em Viagem
Desde aquela dor tamanha
Do momento em que parti
Um só prazer me acompanha,
Filha, o de pensar em ti:Por sobre a negra paisagem
Do meu ermo coração
O luar branco da tua imagem
Veste um benigno clarão.A tarde, no azul celeste,
Há uma estrela esmorecida,
Que é o beijo que tu me deste
Na hora da despedida.Beijo tão longo e dolente,
Tão longo e cortado de ais,
Que o meu coração pressente
Que não te torno a ver mais.Conto no céu estrelado
Lágrimas de oiro sem fim:
É o pranto que tens chorado,
De dia e noite, por mim…Quando me deito na cama
E vou quase adormecido,
Oiço a tua voz que me chama,
Num suplicante gemido.Num gemido tão suave,
Tão triste na noite escura,
Que é como uma queixa d’ave
Presa numa sepultura!…Em sonho, às vezes, meu Deus,
Cuido que vou expirar,
Sem levar nos olhos meus
O teu derradeiro olhar.E sem extremo conforto
Que eu ness’hora quero ter:
Beijar a fronte do morto
Aquela que o fez viver.
A Árvore, a Estrela e a Pequena Mão
A pequena mão desenha a árvore
onde uma estrela se aninha para dormir.
Que dia será o de amanhã
no meio dos escombros onde o eco da súplica
enlouquece os cães famintos?
Quadro trágico para uma noite assim.
A pequena mão pega na borracha
e tenta apagar toda a dor do mundo
e acender com um novo traço
a claridade que resgata a alma.
A estrela acorda numa copa alta
e segue o caminho do que sabe
até encontrar a pequena mão
que tudo reinventa à medida do que somos.
Quando o encontro acontece
já não é noite nem dia, tempo infinito,
mas apenas um lugar onde o choro das crianças
de súbito se transforma em cântico.A pequena mão desenha tudo
o que falta desenhar para o sonho fazer sentido.
É uma mão frágil mas firme, apenas sábia,
e quando abre o livro azul das manhãs
é sempre para escrever as palavras
que o estrondo abafou nas cidades feridas.
A pequena mão desenha uma árvore,
uma estrela e uma mãe aflita.
Depois desenha uma linha de horizonte,
A Invenção do Amor
Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas
janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de apa-
relhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da
nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amorEm letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia
quotidianaUm homem e uma mulher que tinham olhos e coração e
fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperadoNão saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativoUm homem uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A polícia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta
fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique Antes
que a invenção do amor se processe em cadeiaHá pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos
(…)
Enlevo
Não brilha o sol,
Nem póde a lua
Brilhar na sua
Presença d’ella!..
Nenhuma estrella
Brilha deante
Da minha amante,
Da minha amada!A madrugada
Quanto não perde!
O campo verde
Quanto esmorece!
Quanto parece
A voz da ave
Menos suave
Que a sua falla!A flôr exhala
Menos perfume
Do que é costume
O seu cabello!
Que basta vêl-o,
Prende-se a gente!
Prende-se e sente
Gosto ineffavel!Que riso affavel
Aquelle riso!
Que paraíso
Aquella bôca!
Penetra, toca,
Enche de inveja
Um ar que seja
Da sua graça!Onde ella passa,
Onde ella chega,
Quem lhe não prega
Olhos avaros!
Ha dotes raros,
Rara doçura
N’aquella pura
Casta existencia!Oh! que innocencia
Que ella respira!
A alma aspira
Não sei que aroma
Mal nos assoma
Ao longe aquella
Pallida estrella,
Que rege o mundo!…Nunca do fundo
Do oceano
Foi braço humano
Colher tão linda
Perola ainda,
Acordar
Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,
Acordar da Rua do Ouro,
Acordar do Rocio, às portas dos cafés,
Acordar
E no meio de tudo a gare, que nunca dorme,
Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono.Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar,
Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.
À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se
Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,
E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo.Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne,
Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha,
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom,
São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada,
Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes,
Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste,
SejaA mulher que chora baixinho
Entre o ruído da multidão em vivas…
Nas Trevas
Como estou só no mundo! Como tudo
É lagrima e silencio!Ó tristêsa das Cousas, quando é noite
Na terra e em nosso espirito!… Tristêsa
Que se anuncia em vultos de arvoredos,
Em rochas diluidas na penumbra
E soluços de vento perpassando
Na tenebrosa lividez do céu…Ó tristêsa das Cousas! Noite morta!
Pavor! Desolação! Escura noite!
Phantastica Paisagem,
Desde o soturno espaço á fria terra
Toda vestida em sombra de amargura!Êrma noite fechada! Nem um leve
Riso vago de estrela se adivinha…
Sómente as grossas lagrimas da chuva
Escorrem pela face do Silencio…Piedade, noite negra! Não me beijes
Com esses labios mortos de Phantasma!Ó Sol, vem alumiar a minha dôr
Que, perdida na sombra, se dilata
E mais profundamente se enraiza
Nesta carne a sangrar que é a minha alma!Ilumina-te, ó Noite! Ó Vento, cála-te!
Negras nuvens do sul, limpae os olhos,
Desanuviae a bronzea face morta!Oh, mas que noite amarga, toda cheia
Do teu Phantasma angelico e divino;
Espirito que,
A um Poeta Morto
Quando a primeira vez a harmonia secreta
De uma lira acordou, gemendo, a terra inteira,
– Dentro do coração do primeiro poeta
Desabrochou a flor da lágrima primeira.E o poeta sentiu os olhos rasos de água;
Subiu-lhe â boca, ansioso, o primeiro queixume:
Tinha nascido a flor da Paixão e da Mágoa,
Que possui, como a rosa, espinhos e perfume.E na terra, por onde o sonhador passava,
Ia a roxa corola espalhando as sementes:
De modo que, a brilhar, pelo solo ficava
Uma vegetação de lágrimas ardentes.Foi assim que se fez a Via Dolorosa,
A avenida ensombrada e triste da Saudade,
Onde se arrasta, à noite, a procissão chorosa
Dos órfãos do carinho e da felicidade.Recalcando no peito os gritos e os soluços,
Tu conheceste bem essa longa avenida,
– Tu que, chorando em vão, te esfalfaste, de bruços,
Para, infeliz, galgar o Calvário da Vida.Teu pé também deixou um sinal neste solo;
Também por este solo arrastaste o teu manto…
E, ó Musa, a harpa infeliz que sustinhas ao colo,