Poemas sobre Sentir de Fernando Guerreiro

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Poemas de sentir de Fernando Guerreiro. Leia este e outros poemas de Fernando Guerreiro em Poetris.

Ornitologia

Chegado o Outono, o conhecimento concentra-se nas asas
dos pĂĄssaros que pousam lentos sobre as cores dos frutos.
Sem sentimentos, as aves entregam-se ao sabor do vento
e deixam que no cérebro cresça a febre negra das urzes.
Aquieta-os a experiĂȘncia que conservam do espaço
e que todas as tardes os inibe de partir para continentes
mais prósperos e seguros. Sustém-os um atavismo
apenas explicĂĄvel pelo saber dos signos e o seu desejo
colectivo de suicĂ­dio. Porque nĂŁo escolhem antes
perder-se na tempestade? Talvez visto do ar,
aos seus olhos o mundo se torne mais pesado
e o pensamento se confunda, na memĂłria,
com uma paisagem festiva de piras fĂșnebres.
E contudo, apesar do carĂĄcter cerrado da atmosfera,
o seu peso parece ter-se jĂĄ deixado de sentir
sobre o discurso. Virados para dentro,
as imagens em que se reflectem sĂŁo
as de um mundo banhado pela penĂșmbra.
Afogado na sua razĂŁo de ser. MediĂșnico.
Imagine-se agora o caçador a entrar
paisagem dentro para abater as peças
de que se compÔe o cenårio uma a uma:
vista de dentro,

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Do Fundo da Mesa

O jantar jĂĄ tinha sido servido. No fundo da mesa,
os pratos amontoavam-se por entre restos ilesos
de comida. Era para ali que nos retirĂĄvamos, para
deixar de sentir por momentos, sobre os ombros,
o peso da literatura. A sua incomodidade. NĂŁo
seria possĂ­vel dela extrair, agora, um novo uso?
Nessas alturas, a filosofia consolava-nos do ruĂ­do
das conversas, da prĂłpria ĂȘnfase a que recorrĂ­amos
para que, sobre a mesa, o poema ficasse escrito.
Porque o fazĂ­amos? Tornar-se-ia o mundo
mais limpo depois de escrito? Como as mĂŁos
que no rebordo da toalha, enxugĂĄvamos?
E no entanto era esse o melhor argumento
de que dispĂșnhamos: o das mulheres-escritoras
que, noutro século, fiéis ao desvelo dos armårios,
reinventavam o mundo no aconchego das cozinhas.