Olhar
As grades que me prendem são teus olhos,
aquática prisão, cela telúrica,
liana que me enrosca e me desfolha
no tronco tosco dessa árvore lúbrica.No sol de Gláucia apenas me recolho
e, sendo assim, o sido se faz público
num pelourinho aberto com seus folhos
zurzindo seu chicote em gestos lúdicos.Perau de feras, circo de centelha
regendo as águas tépidas de escamas
no fogo da (a)ventura da parelha.Tudo em suor e sal o amor proclama:
No mar do teu olhar a onda se espelha
na chama que me queima e que te inflama.
Sonetos de Anibal Beça
58 resultadosO Cão
O cão da caravana acoita sarnas
pelos pêlos tragados de suor
que encarnam carnaduras já de cor
na salteada costa descarnadaO cão da caravana esconde as armas
o fogo e a cinza dessa cauda cor-
rente ao dorso de estrelas apagadas
se acendem cimitarras para a dorAo relho e aos ossos pó entre mil noites
dita a desdita escrita: Maktub!
E o cão se assenta dócil para o açoiteMas lhe aguarda a tarefa de quem ladra
e exorcisa a baraka dos impuros
enquanto a vida caravana passa
Aboio De Ternura Para Uma Rês Desgarrada Para Astrid Cabral
Fora de tua tribo peixe fora d’água,
bordando as muitas dores no ponto de cruz,
alinhavas rebanhos reunidos na frágua
dos rios da tua infância com escamas de luz.Versos tecidos na cambraia das anáguas
de alices caboclas, yaras-cunhãs do fundo,
encantadas dos peraus, afogando mágoas,
mas que sabem, sestrosas, dos botos do mundo.E os teus pés desgarrados pisaram em nuvens
de ventos sem mormaços, no azul de outras línguas:
águas despidas do alfenim de nossas chuvas.Te sabias folha de relva da ravina
irmã de Whitman e do Khayam simum
próxima do teu gado e rês da própria sina.
A Morte Sendo Amor
Quantas vezes subi com a pedra às costas
para depois descer com o mesmo fardo
torneio em que sou alvo do meu dardo
próprio, a sangrar nas távolas de apostas.Não me sei vencedor. Tampouco guardo
as dores, ou fraturas mais expostas.
Sei que vou quando chego e não me tardo.
Lição que é nascitura e de ocasosna transversal em curva me celebro
o vencedor, o torto sem atrasos.
Eis aí a certeza derradeiraque chega invitável sem ter prazos:
vivi todas subidas e descidas
amortecendo o amor sem as feridas
Joropo Para Timples E Harpa
Em duas asas prontas para o vôo
assim se foi em par a minha vida
e com rilhar de dentes me perdôo
trilhando as horas nuas na medidaBilros tecendo rendas amarelas
bordando em vão um tempo já remoto
no sol dos girassóis da cidadela
canto um recanto que me faz devotoA dor que existe em mim raiz que medra
no rastro mais sombrio as minhas luas
talvez não fora Sísifo ou a pedraque encontro todo dia pelas ruas
ao revirar as heras nessa redra
trilhando na medida as horas nuas
Contemplação
Nas crinas de cavalos reclinados
penteia o vento nuvens retorcidas
enquanto a sombra cai do céu calado
na relva da campina amanhecida.Passeia o sol as hastes sublevadas
dos girassóis lambidos no rocio
que vaidosos se alçam na mirada
narcisos desse espelho em seu feitio.A calma da manhã veste amarelo
e despe toda angústia na brandura
das cores desse dia sem duelo.Sendo o perdido me acho sem procura
sofrendo tenho sido meu flagelo
mas esse olhar agora me inaugura.
Espelho (I)
O que sobrou de mim são essas sombras
Sobrada sobra, cinza dos minutos,
Que me alimenta os ossos da memória.Nessa voragem vaga, um mar de calma
Lambendo vem a pressa em que me aposto
Na duração que escorre nessa arena.Do fim regresso fera não domada
Ao mesmo pouso de ave renascida
Para o sol da surpresa nas janelas
Escancarando um solo transmutado.De baixo para cima é que renovo
As vestes da sintaxe que componho
Clara inversão da jaula das palavras
Para fechar sem chave a minha sina.
Prólogo
Cavo a cova como um cavalo os cascos cava
se no cavá-lo invoca a fúria de ferir
E tanto mais se cava que a alma não se lava
e as águas já me levam léguas a fingirCava costura cavo à cava enviesada
e o talhe tinge a sombra em descaída pena
Nessa escritura a sina foge desgarrada
e o corte torce a mão e a garra do poemaE dono não sou mais senão o torto artífice
dessas linhas traçadas a dois e por um
E assim me assino esse uno e esse outro Majnun
que por louca paixão da noite é seu partícipemesmo sem Laila veste a dor e se vislumbra
nos lobos do deserto donos da penumbra
Senhora I
No calmo colo pouso meus segredos
Senhora que sabeis minhas fraquezas.
convoco só convosco o que antecedo
na lira ensimesmada da incerteza.Não sei se o vero verso do degredo
vem albergado ou presa de represa
das frias águas íntimas do medo
lavando o frágil lado da tristeza.A depressiva face não mostrada
esplende em vosso espelho que me abriga
lambendo o sal dos olhos da geada.Águas que são do orvalho da fadiga
de recorrentes gotas espalhadas
regando as vossas mãos de amada e amiga
Poeira (Para José Felix)
Do pó ao pólen posta-se o poema
na penumbra do parto antecipado.
Abre-se uma janela sem algema
presa somente do seu próprio fado.Areia e barro, sol com sua gema,
a gala clara do ovo, visgo dado
ao solo só de vértebras, seu tema
variado na avena: chão arado.O tropo, o trapo, as vestes: eis aí
a massa que caldeia essa bigorna
ensolando alimárias ao se de si.Nada é constante e tudo se transforma.
Eppur si muove em ánima no giz
escrito no vaivém se vai e torna.
Espera
Teus minutos são estalactites
agulhas finas de cal e água
setas refiladas de um relógio
na areia do deserto clepsidra.Caroços de fruto apodrecido
para uma nova semeadura
em colheita sem nenhum estorvo
anunciando o pródigo regresso.Que tu venhas sem a matemática
sem a tabuada fria das horas
rachar minha parede de pedra.Que tu venhas sedutora chama
pluma de pássara renascida
vinda com teu fogo e não com cinzas.
Avena Pastoral
Harmonia de coxas protetora
do presente esperado como prêmio
antevéspera és, a domadora
dos gestos apressados no proscêniodo palco em que inauguro-te pastora
de ovelha desgarrada,vil boêmio,
peregrino da noite assoladora,
a solar no teu corpo um abstêmiocanto, de partitura tão antiga,
em que tecidos sons alucinados
são sedas de silêncio na cantiga.Uma cantiga em gozo emparelhado.
E tu na flauta tocas pra que eu siga
lambendo o sal no lago desgarrado.
Último Round
O vento que de verde tudo varre
não varre esta floresta onde eu habito.
Espana roxas nódoas de um espárringue
que sou eu mesmo a rir por esses ringues.Porradas que me dou? Mero detalhe,
de quem passou a vida sem ter sido
sendo, o sabido súdito do anárquico.
Não fui, não sou, não quero ser doído.O menestrel choroso? Este não vale,
perdeu-se pelos socos de outras divas
em noites desbotadas na paisagem.Mas então, o que fica dessa trilha?
ora, amigo, nocautes dessa aragem
varrida nos cruzados descaminhos.
O Começo Antes Do Começo
A chuva cheia chama por um nome
nesse som abafado em água funda.
No líquido chamado há um rio que some
afogando a palavra, flor fecunda,já morta no som cavo que consome
o provável vestígio que se afunda.
Na sanha esse fastio enfeixa a fome
um som de ossos de vértebras rotundas,harpa transida em tons e semitons:
Uma dodecafônica cantata
deassomada assonância se compõeno dissonante sonho em catarata.
Chuva de vozes, chuva de Breton:
Nasce o cão andaluz e um sol desata-se.
Cantares Bacantes (II)
Canto a lira dissonante:
como custam meus cantares!
os cantochões dos solares
mais remotos que um levante.Tua branca primavera
lança-perfume dos ares
profundo nácar dos pares
mas verdes ramas da hera.A cigarra morta canta
tua tarde de passagem
que a voz do bronze levantalouvores a teu passeio
de gazela: leve aragem
ao coração, meu anseio!
E Havia A Via Estreita
(Para Alexei Bueno)
Aquém de mim há quem procure sombras
como quem cata a vida em folhas mortas.
Se não as acha, sobra-lhe do encontro
a coisa ida via estreita porta.Saber do pó que lambe esses escombros
a pouca luz que espouca e me transporta
é ser e ter em mim o Outro que escondo
que vive a deslizar por ruas tortas.Comigo sou, estou e ficarei
tecendo a tessitura que me esplende
na luz esparramada dessa grei.Se aquém de mim, alguém, que me vende
os olhos, saiba: a via já passei.
E o verso vem comigo e não se rende.
Música Da Hora
Habito a pausa no hábito da pauta
música de silêncios e soluços
a refrear desmandos dos impulsos
que se querem agudos sons de flauta.A vida é toda música em seu curso
do grito original em rima incauta
ao sussurro que se ouve em cama infausta
nesse fim dissonante do percurso.O tempo se encarrega do metrônomo
unido a dois ponteiros de um cronômetro
em que o delgado veste-se de momopara alegrar as horas do pequeno
que dança a marcha gris em chão sereno
fugindo ao dois por quatro do abandono.
Os Castrados
Há muitos tipos de castrados.
Há os da casta de cantores
que se afinam na voz mais fina
aleijões de seus dissabores.Há os de vida feminina
de tarefas vis sem pudores
aios de haréns de concubinas
os assexuados sem rumores.São todos eunucos forçados
vítimas do mando de autores:
os sultões de sanha assassina
que gozam no estertor das dores.Castrados morais têm escrotos,
mas gozam com sexo dos outros.