Sonetos sobre Mortos

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Sonetos de mortos escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

Ciclo Terreno

Só morta a natureza se comporta
na expectativa podre dessas frutas
amolecidas no chão que as conforta
para o vôo de moscas dissolutas.

Esse tempo ruído rói a crosta
de rugas ventiladas na disputa
de asas amaciando a pele morta
deixando à mostra o feto do desfruto.

O cheiro cavo amaro pousa às costas
do vento que carrega no azedume
sementes de tanino em seu curtume.

São muitos comensais nesse repasto
velando o transitório na certeza
sabendo que outra fruta volta à mesa.

Soneto XXXXV

Ecos de minhas glórias, que ficastes
Nos vales, onde foram sepultadas,
Pois morreram sem tempo malogradas,
Porque com elas não vos sepultastes?

Se, como a brados de Leão, cuidastes
Que poderiam ser ressuscitadas,
São vozes essas no deserto dadas
Que a conjunção dos dias já passastes.

E se ficastes para me ajudardes
A renovar meu sentimento esquivo,
Não desacrediteis minhas memórias,

Que se c’os Ecos meus vos encontrardes,
Achareis, que servis mais para um vivo,
E que eles servem sós a mortas glórias.

A uma Suspeita

Amor, se uma mudança imaginada
É com tanto rigor minha homicida,
Que fará, se passar de ser temida,
A ser, como temida, averiguada?

Se só por ser de mim tão receada,
Com dura execução me tira a vida,
Que fará, se chegar a ser sabida?
Que fará, se passar de suspeitada?

Porém, já que me mata, sendo incerta,
Somente o imaginá-la e presumi-la,
Claro está, pois da vida o fio corta.

Que me fará depois, quando for certa,
Ou tornar a viver para senti-la,
Ou senti-la também depois de morta.

Tédio

Passo pálida e triste. Oiço dizer:
“Que branca que ela é! Parece morta!”
E eu que vou sonhando, vaga, absorta,
Não tenho um gesto, ou um olhar sequer…

Que diga o mundo e a gente o que quiser!
— O que é que isso me faz? O que me importa?…
O frio que trago dentro gela e corta
Tudo que é sonho e graça na mulher!

O que é que me importa?! Essa tristeza
É menos dor intensa que frieza,
É um tédio profundo de viver!

E é tudo sempre o mesmo, eternamente…
O mesmo lago plácido, dormente…
E os dias, sempre os mesmos, a correr…

Mudez Perversa

Que mudez infernal teus lábios cerra
Que ficas vago, para mim olhando,
Na atitude de pedra, concentrando
No entanto, n’alma, convulsões de guerra!

A mim tal fel essa mudez encerra,
Tais demônios revéis a estão forjando
Que antes te visse morto, desabando
Sobre o teu corpo grossas pás de terra.

Não te quisera nesse atroz e sumo
Mutismo horrível que não gera nada,
Que não diz nada, não tem fundo e rumo.

Mutismo de tal dor desesperada,
Que quando o vou medir com o estranho prumo
Da alma fico com a alma alucinada!

O Pântano

Podem vê-lo, sem dor, meus semelhantes!
Mas, para mim que a Natureza escuto,
Este pântano é o túmulo absoluto,
De todas as grandezas começantes!

Larvas desconhecidas de gigantes
Sobre o seu leito de peçonha e luto
Dormem tranqüilamente o sono bruto
Dos superorganismos ainda infantes!

Em sua estagnação arde uma raça,
Tragicamente, à espera de quem passa
Para abrir-lhe, às escâncaras, a porta…

E eu sinto a angústia dessa raça ardente
Condenada a esperar perpetuamente
No universo esmagado da água morta!

Bem Mostrou o Pintor Estilo Agudo

Bem mostrou o pintor estilo agudo
No retrato, senhora, que vos mando,
Pois não só o parecer foi retratando,
Mas os efeitos com mais alto estudo.

Se vai mudo ante vós, eu fico mudo;
Se surdo, e cego, bem cego, e surdo ando;
Se morto, a vida vai-se-me acabando;
Em fim que vai conforme a mim em tudo.

Mas na ventura fica avantajado,
Que vai (com gosto vosso) à vossa mão,
Onde será melhor visto, e tratado:

Mercês, que se deviam por razão
Ao próprio original, porque o traslado
Não vê, nem sente de que preço são.

Cegueira Bendita

Ando perdida nestes sonhos verdes
De ter nascido e não saber quem sou,
Ando ceguinha a tatear paredes
E nem ao menos sei quem me cegou!

Não vejo nada, tudo é morto e vago…
E a minha alma cega, ao abandono
Faz-me lembrar o nenúfar dum lago
´Stendendo as asas brancas cor do sonho…

Ter dentro d´alma na luz de todo o mundo
E não ver nada nesse mar sem fundo,
Poetas meus irmãos, que triste sorte!…

E chamam-nos a nós Iluminados!
Pobres cegos sem culpas, sem pecados,
A sofrer pelos outros té à morte!

Nessa Sala Perdida Na Inglaterra

Nessa sala perdida na Inglaterra
Vivo entre coisas mortas, vivo e mudo
Poeta louco e triste, eu te saúdo
No teu quarto de século na terra

Não te valha essa máscara de estudo
Nem te sirva essa máscara de guerra
Valha-te essa tristeza que te aterra
E essa loucura que em tua alma é tudo

Mova-te o sangue que em teu ser lateja
Leve-te o estro lúcido e distante
Que consomes nos copos de cerveja

Leve-te a vida ao bem da tua amante
E a mote, que do túmulo te beija
Viva-te como um momento deste instante.

Soneto I – Leandro E Hero

O facho do Helesponto apaga o dia,
Sem que aos olhos de Hero o sono traga,
Que dentro de sua alma não se apaga
O fogo com que o facho se acendia.

Aflita o seu Leandro ao mar pedia,
Que abrandado por ela, a prece afaga,
E traz-lhe o morto amante numa vaga,
(Talvez vaga de amor, inda que fria).

Ao vê-lo pasma, e clama num transporte —
“Leandro!… és morto?!… Que destino infando
Te conduz aos meus braços desta sorte?!!

Morreste!… mas… (e às ondas se arrojando
Assim termina já sorvendo a morte)
Hei de, mártir de amor, morrer te amando.”

Tarde Demais…

Quando chegaste enfim, para te ver
Abriu-se a noite em mágico luar;
E pra o som de teus passos conhecer
Pôs-se o silêncio, em volta, a escutar…

Chegaste enfim! Milagre de endoidar!
Viu-se nessa hora o que não pode ser:
Em plena noite, a noite iluminar;
E as pedras do caminho florescer!

Beijando a areia d’oiro dos desertos
Procura-te em vão! Braços abertos,
Pés nus, olhos a rir, a boca em flor!

E há cem anos que eu fui nova e linda!…
E a minha boca morta grita ainda:
“Por que chegaste tarde, Ó meu Amor?!…”

No Egito

Sob os ardentes sóis do fulvo Egito
De areia estuosa, de candente argila,
Dos sonhos da alma o turbilhão desfila,
Abre as asas no páramo infinito.

O Egito é sempre o amigo, o velho rito
Onde um mistério singular se asila
E onde, talvez mais calma, mais tranqüila
A alma descansa do sofrer prescrito.

Sobre as ruínas d’ouro do passado,
No céu cavo, remoto, ermo e sagrado,
Torva morte espectral pairou ufana…

E no aspecto de tudo em torno, em tudo,
Árido, pétreo, silencioso, mudo,
Parece morta a própria dor humana!

Diário duma Mulher

Meu rosto já tem vincos de cansaço.
Murcharam como as rosas minhas faces.
Já não posso estreitar-te num abraço,
sem temer, meu Amor, que não me abraces!

O luar nos meus olhos fez-se baço.
Meus lábios, se algum dia tu beijasses!…
Meu passado, porém, morreu no espaço,
qual nuvem que em chuvisco transformasses!

O futuro não tem de que viver.
O amor — raízes mortas que não nascem —,
os sonhos, estão como se embarcassem

num cruzeiro de calma, sem saber
que o é… Mas essa calma hoje é sinónimo
de um sentimento misterioso, anónimo…

Consolo Amargo

Mortos e mortos, tudo vai passando,
Tudo pelos abismos se sumindo…
Enquanto sobre a Terra ficam rindo
Uns, e já outros, pálidos, chorando…

Todos vão trêmulos finalizando,
Para os gelados túmulos partindo,
Descendo ao tremedal eterno, infindo,
Mortos e mortos, num sinistro bando.

Tudo passa espectral e doloroso,
Pulverulentamente nebuloso
Como num sonho, num fatal letargo…

Mas, de quem chora os mortos, entretanto,
O Esquecimento vem e enxuga o pranto,
E é esse apenas o consolo amargo!

Mundos Extintos

São tão remotas as estrelas que,
apesar da vertiginosa velocidade da luz,
elas se apagam. e continuam a brilhar durante séculos.

MORREM OS MUNDOS… Silenciosa e escura,
Eterna noite cinge-os. Mudas, frias,
Nas luminosas solidões da altura
Erguem-se, assim, necrópoles sombrias…

Mas pra nós, di-lo a ciência, além perdura
A vida, e expande as rútilas magias…
Pelos séculos em fora a luz fulgura
Traçando-lhes as órbitas vazias.

Meus ideais! extinta claridade –
Mortos, rompeis, fantásticos e insanos
Da minh’alma a revolta imensidade…

E sois ainda todos os enganos
E toda a luz, e toda a mocidade
Desta velhice trágica aos vinte anos…

Torre de Névoa

Subi ao alto, à minha Torre esguia,
Feita de fumo, névoas e luar,
E pus-me, comovida, a conversar
Com os poetas mortos, todo o dia.

Contei-lhes os meus sonhos, a alegria
Dos versos que são meus, do meu sonhar,
E todos os poetas, a chorar,
Responderam-me então: “Que fantasia,

Criança doida e crente! Nós também
Tivemos ilusões, como ninguém,
E tudo nos fugiu, tudo morreu! …”

Calaram-se os poetas, tristemente …
E é desde então que eu choro amargamente
Na minha Torre esguia junto ao céu! …

Porto inseguro

A liberdade bate à minha porta,
tão carente de mim, pedindo abrigo.
Quero ampará-la e penso que consigo
detê-la, mas seria tê-la morta.

Livre para pairar num céu sem peias,
na solidão de um vôo sem destino,
por que perder, nos olhos de águia, o tino,
vindo a quem se agrilhoa sem cadeias?

Deusa das asas! Seu vagar escapa
a meus sentidos, seu desejo alcança
tudo que a mim se esconde atrás da capa.

Vá embora daqui! Siga seu rumo!
Sou prisioneiro, um órfão da esperança
e arrasto um vôo cego em chão sem prumo.

Soneto XXI

As Relíquias de S. Cruz de Coimbra

Aquela Águia gentil de vista estranha
A Cristo viu, co’ a mão de estrelas chea,
Solícito, qual anda o que semea
C’os olhos longos no que ao longe apanha.

Lavrador foi no mundo, e com tamanha
Sede que inda de lá fruito granjea.
Mas ai Senhor, em terra e triste area,
Mal estrelas se dão, pouco se ganha.

Bem sabe Cristo o que semea, e onde:
As vivas mortes são de mortas vidas
(Que hoje neste sagrado templo esconde)

Estrelas, que de carne estão vistidas.
A quem semea seu valor responde,
E bem, donde as semea merecidas.

Divino Instante

Ser uma pobre morta inerte e fria,
Hierática, deitada sob a terra,
Sem saber se no mundo há paz ou guerra,
Sem ver nascer, sem ver morrer o dia;

Luz apagada ao alto e que alumia,
Boca fechada à fala que não erra,
Urna de bronze que a Verdade encerra,
Ah! ser Eu essa morta inerte e fria!

Ah! fixar o efémero! Esse instante
Em que o teu beijo sôfrego de amante
Queima o meu corpo frágil de âmbar loiro;

Ah! fixar o momento em que, dolente,
Tuas pálpebras descem, lentamente,
Sobre a vertigem dos teus olhos de oiro!

Uma Amiga

Aqueles que eu amei, não sei que vento
Os dispersou no mundo, que os não vejo…
Estendo os bracos e nas trevas beijo
Visões que a noite evoca o sentimento…

Outros me causam mais cruel tormento
Que a saudade dos mortos… que eu invejo…
Passam por mim… mas como que tem pejo
Da minha soledade e abatimento!

Daquela primavera venturosa
Não resta uma flor so, uma so rosa…
Tudo o vento varreu, queimou o gelo!

Tu so foste fiel – tu, como dantes,
Inda volves teus olhos radiantes…
Para ver o meu mal… e escarnece-lo!