Os Doentes
Como uma cascavel que se enroscava
A cidade dos lázaros dormia…
Somente, na metrĂłpole vazia,
Minha cabeça autônoma pensava!Mordia-me a obsessão má de que havia,
Sob os meus pés, na terra onde eu pisava,
Um fĂgado doente que sangrava
E uma garganta de ĂłrfĂŁ que gemia!Tentava compreender com as conceptivas
Funções do encéfalo as substâncias vivas
Que nem Spencer, nem Haeckei compreenderam…E via em mim, coberto de desgraças,
O resultado de biliões de raças
Que há muitos anos desapareceram!
Sonetos Exclamativos de Augusto dos Anjos
119 resultadosO Lázaro Da Pátria
Filho podre de antigos Goitacases,
Em qualquer parte onde a cabeça ponha,
Deixa circunferências de peçonha,
Marcas oriundas de úlceras e antrazes.Todos os cinocéfalos vorazes
Cheiram seu corpo. À noite, quando sonha,
Sente no tĂłrax a pressĂŁo medonha
Do bruto embate fĂ©rreo das tenazes,Mostra aos montes e aos rĂgidos rochedos
A hedionda elefantĂasis dos dedos…
Há um cansaço no Cosmos… Anoitece,Riem as meretrizes no Casino,
E o Lázaro caminha em seu destino
Para um fim que ele mesmo desconhece!
A Nau
A Heitor Lima
Sôfrega, alçando o hirto esporão guerreiro,
Zarpa. A Ăngreme cordoalha Ăşmida fica. …
Lambe-lhe a quilha a espĂşmea onda impudica
E ébrios tritões, babando, haurem-lhe o cheiroNa glauca artéria equórea ou no estaleiro
Ergue a alta mastreação, que o éter indica,
E estende os braços de madeira rica
Para as populações do mundo inteiro!Aguarda-a ampla reentrância de angra horrenda
Pára e, a amarra agarrada à âncora, sonha!
Mágoas, se as tem, subjugue-as ou disfarce-as…E nĂŁo haver uma alma que lhe entenda
A angústia transoceânica medonha
No rangido de todas as enxárcias!
O Lamento Das Coisas
Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos,
O choro da Energia abandonada!É a dor da Força desaproveitada
– O cantochĂŁo dos dĂnamos profundos,
Que, podendo mover milhões de mundos,
jazem ainda na estática do Nada!É o soluço da forma ainda imprecisa…
Da transcendĂŞncia que se nĂŁo realiza…
Da luz que nĂŁo chegou a ser lampejo…E Ă© em suma, o subconsciente ai formidando
Da Natureza que parou, chorando,
No rudimentarismo do Desejo!
O Coveiro
Uma tarde de abril suave e pura
Visitava eu somente ao derradeiro
Lar; tinha ido ver a sepultura
De um ente caro, amigo verdadeiro.Lá encontrei um pálido coveiro
Com a cabeça para o chão pendida;
Eu senti a minh’alma entristecida
E interroguei-o: “Eterno companheiroDa morte, que matou-te o coração?”
Ele apontou para uma cruz no chĂŁo,
Ali jazia o seu amor primeiro!Depois, tomando a enxada gravemente,
Balbuciou, sorrindo tristemente: –
“Ai! Foi por isso que me fiz coveiro!”
Hino À Dor
Dor, saĂşde dos seres que se fanam,
Riqueza da alma, psĂquico tesouro,
Alegria das glândulas do choro
De onde todas as lágrimas emanam..És suprema! Os meus átomos se ufanam
De pertencer-te, oh! Dor, ancoradouro
Dos desgraçados, sol do cérebro, ouro
De que as próprias desgraças se engalanam!Sou teu amante! Ardo em teu corpo abstrato.
Com os corpúsculos mágicos do tacto
Prendo a orquestra de chamas que executas…E, assim, sem convulsĂŁo que me alvorece,
Minha maior ventura Ă© estar de posse
De tuas claridades absolutas!
Lirial
Por que choras assim, tristonho lĂrio,
Se eu sou o orvalho eterno que te chora,
P’ra que pendes o cálice que enflora
Teu seio branco do palor do cĂrio?!Baixa a mim, irmĂŁ pálida da Aurora,
Estrela esmaecida do MartĂrio;
Envolto da tristeza no delĂrio,
Deixa beijar-te a face que descora!Fosses antes a rosa purpurina
E eu beijaria a pétala divina
Da rosa, onde nĂŁo pousa a desventura.Ai! que ao menos talvez na vida escassa
Não chorasses à sombra da desgraça,
Para eu sorrir Ă sombra da ventura!
Ouvi, Senhora, O Cântico Sentido
Ouvi, senhora, o cântico sentido
Do coração que geme e s’estertora
N’ânsia letal que o mata e que o devora,
E que tornou-o assim, triste e descrido.Ouvi, senhora, amei; de amor ferido,
As minhas crenças que alentei outrora
Rolam dispersas, pálidas agora,
Desfeitas todas num guaiar dorido.E como a luz do sol vai-se apagando!
E eu triste, triste pela vida afora,
Eterno pegureiro caminhando,Revolvo as cinzas de passadas eras,
Sombrio e mudo e glacial, senhora,
Como um coveiro a sepultar quimeras!
Mater Originalis
Forma vermicular desconhecida
Que estacionaste, mĂsera e mofina,
Como quase impalpável gelatina,
Nos estados prodrĂ´micos da vida;O hierofante que leu a minha sina
Ignorante é de que és, talvez, nascida
Dessa homogeneidade indefinida
Que o insigne Herbert Spencer nos ensina.Nenhuma ignota uniĂŁo ou nenhum nexo
A contingência orgânica do sexo
A tua estacionária alma prendeu…Ah! de ti foi que, autĂ´noma e sem normas,
Oh! MĂŁe original das outras formas,
A minha forma lĂşgubre nasceu!
A Dança Da Psiquê
A dança dos encéfalos acesos
Começa. A carne é fogo. A alma arde. A espaços
As cabeças, as mãos, os pés e os braços
Tombara, cedendo à ação de ignotos pesos!É então que a vaga dos instintos presos
– MĂŁe de esterilidades e cansaços –
Atira os pensamentos mais devassos
Contra os ossos cranianos indefesos.Subitamente a cerebral coréa
Pára. O cosmos sintético da Idéa
Surge. Emoções extraordinárias sinto…Arranco do meu crânio as nebulosas.
E acho um feixe de forças prodigiosas
Sustentando dois monstros: a alma e o instinto!
Revelação
I
Escafandrista de insondado oceano
Sou eu que, aliando Buda ao sibarita,
Penetro a essência plásmica infinita,
-MĂŁe promĂscua do amor e do Ăłdio insano!Sou eu que, hirto, auscultando o absconso arcano,
Por um poder de acĂşstica esquisita,
Ouço o universo ansioso que se agita
Dentro de cada pensamento humano!No abstrato abismo equĂłreo, em que me Inundo,
Sou eu que, revolvendo o ego profundo
E a ódio dos cérebros medonhos,Restituo triunfalmente à esfera calma
Todos os cosmos que circulam na alma
Sob a forma embriolĂłgica de sonhos!
Apocalipse
Minha divinatĂłria Arte ultrapassa
os séculos efêmeros e nota
Diminuição dinâmica, derrota
Na atual força, integérrima, da Massa.É a subversão universal que ameaça
A Natureza, e, em noite aziaga e ignota,
Destrói a ebulição que a água alvorota
E põe todos os astros na desgraça!São despedaçamentos, derrubadas,
Federações sidĂ©ricas quebradas…
E eu sĂł, o Ăşltimo a ser, pelo orbe adeante,EspiĂŁo da cataclĂsmica surpresa
A Ăşnica luz tragicamente acesa
Na universalidade agonizante!
Anseio
Que sou eu, neste ergástulo das vidas
Danadamente, a soluçar de dor?!
– Trinta triliões de cĂ©lulas vencidas,
Nutrindo uma efeméride inferior.Branda, entanto, a afagar tantas feridas,
A áurea mão taumitúrgica do Amor
Traça, nas minhas formas carcomidas,
A estrutura de um mundo superior!Alta noite, esse mundo incoerente
Essa elementarĂssima semente
Do que hei de ser, tenta transpor o Ideal…Grita em meu grito, alarga-se em meu hausto,
E, ai! como eu sinto no esqueleto exausto
NĂŁo poder dar-lhe vida material!
Sofredora
Cobre-lhe a fria palidez do rosto
O sendal da tristeza que a desola;
Chora – o orvalho do pranto lhe perola
As faces maceradas de desgosto.Quando o rosário de seu pranto rola,
Das brancas rosas do seu triste rosto
Que rolam murchas como um sol já posto
Um perfume de lágrimas se evola.Tenta às vezes, porém, nervosa e louca
Esquecer por momento a mágoa intensa
Arrancando um sorriso Ă flor da boca.Mas volta logo um negro desconforto,
Bela na Dor, sublime na Descrença.
Como Jesus a soluçar no Horto!
Noivado
Os namorados ternos suspiravam,
Quando há de ser o venturoso dia?!
Quando há de ser!? O noivo então dizia
E a noiva e ambos d’amores s’embriagavam.E a mesma frase o noivo repetia;
Fora no campo pássaros trinavam,
Quando há de ser!? E os pássaros falavam;
Há de chegar, a brisa respondia.Vinha rompendo a aurora majestosa,
Dos rouxinĂłis ao sonoroso harpejo
E a luz do sol vibrava esplendorosa.Chegara enfim o dia desejado,
Ambos unidos soluçara um beijo,
Era o supremo beijo de noivado!
Guerra
Guerra Ă© esforço, Ă© inquietude, Ă© ânsia, Ă© transporte…
E a dramatização sangrenta e dura
Vir Deus num simples grĂŁo de argila errante,
Da avidez com que o EspĂrito procuraÉ a SubconsciĂŞncia que se transfigura
Em volição conflagradora… E a coorte
Das raças todas, que se entrega à morte
Para a felicidade da Criatura!É a obsessão de ver sangue, é o instinto horrendo
De subir, na ordem cĂłsmica, descendo
A irracionalidade primitiva…É a Natureza que, no seu arcano,
Precisa de encharcar-se em sangue humano
Para mostrar aos homens que está viva!
Vandalismo
Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longĂnquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.Como os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos …E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus prĂłprios sonhos!
Caput Immortale
Na dinâmica aziaga das descidas,
Aglomeradamente e em turbilhĂŁo
Solucem dentro do Universo anciĂŁo,
Todas as urbes siderais vencidas!Morra o éter. Cesse a luz. Parem as vidas,
Sobre a pancosmolĂłgica exaustĂŁo
Reste apenas o acervo árido e vão
Das muscularidades consumidas!Ainda assim, a animar o cosmos ermo,
Morto o comĂ©rcio fĂsico nefando,
Oh! Nauta aflito do Subliminal,Como a Ăşltima expressĂŁo da Dor sem termo,
Tua cabeça há de ficar vibrando
Na negatividade universal!
O SarcĂłfago
Senhor da alta hermenĂŞutica do Fado
Perlustro o atrium da Morte… É frio o ambiente
E a chuva corta inexoravelmente
O dorso de um sarcófago molhado!Ah! Ninguém ouve o soluçante brado
De dor profunda, acérrima e latente.
Que o sarcĂłfago, ereto e imĂłvel sente
Em sua prĂłpria sombra sepultado!DĂłi-lhe (quem sabe?!) essa grandeza horrĂvel
Que em toda a sua máscara se expande,
Ă€ humana comoção impondo-a, inteira…DĂłi-lhe, em suma, perante o IncognoscĂvel
Essa fatalidade de ser grande
Para guardar unicamente poeira!
Versos A Um CĂŁo
Que força pode, adstricta a ambriões informes,
Tua garganta estĂşpida arrancar
Do segredo da célula ovular
Para latir nas solidões enormes?!Esta obnóxia inconsciência, em que tu dormes,
SuficientĂssima Ă©, para provar
A incĂłgnita alma, avoenga e elementar
Dos teus antepassados vermiformes.CĂŁo! – Alma de inferior rapsodo errante!
Resigna-a, ampara-a, arrima-a, afaga-a, acode-a
A escala dos latidos ancestrais. . .E irá assim, pelos séculos, adiante,
Latindo a esquisitĂssima prosĂłdia
Da angústia hereditária dos seus pais!