Sonetos sobre Homens de Antero de Quental

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Sonetos de homens de Antero de Quental. Leia este e outros sonetos de Antero de Quental em Poetris.

Tese e AntĂ­tese

I

Já não sei o que vale a nova idéia,
Quando a vejo nas ruas desgrenhada,
Torva no aspecto, Ă  luz da barricada,
Como bacchante apĂłs lĂşbrica ceia…

Sanguinolento o olhar se lhe incendeia;
Respira fumo e fogo embriagada:
A deusa de alma vasta e sossegada
Ei-la presa das fĂşrias de Medeia!

Um século irritado e truculento
Chama Ă  epilepsia pensamento,
Verbo ao estampido de pelouro e obuz…

Mas a idea Ă© n’um mundo inalterável,
N’um cristalino cĂ©u, que vive estável…
Tu, pensamento, nĂŁo Ă©s fogo, Ă©s luz!

II

N’um cĂ©u intemerato e cristalino
Pode habitar talvez um Deus distante,
Vendo passar em sonho cambiante
O Ser, como espectáculo divino.

Mas o homem, na terra onde o destino
O lançou, vive e agita-se incessante:
Enche o ar da terra o seu pulmĂŁo possante…
Cá da terra blasfema ou ergue um hino…

A idéia encarna em peitos que palpitam:
O seu pulsar sĂŁo chamas que crepitam,
Paixões ardentes como vivos sóis!

Combatei pois na terra árida e bruta,

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Disputa em FamĂ­lia

I

Sai das nuvens, levanta a fronte e escuta
O que dizem teus filhos rebelados,
Velho Jeová de longa barba hirsuta,
Solitário em teus Céus acastelados:

« — Cessou o império enfim da força bruta!
NĂŁo sofreremos mais, emancipados,
O tirano, de mĂŁo tenaz e astuta,
Que mil anos nos trouxe arrebanhados!

Enquanto tu dormias impassĂ­vel,
Topámos no caminho a liberdade
Que nos sorriu com gesto indefinĂ­vel…

Já provámos os frutos da verdade…
Ă“ Deus grande, Ăł Deus forte, Ăł Deus terrĂ­vel.
NĂŁo passas d’uma vĂŁ banalidade! — »

II

Mas o velho tirano solitário,
De coração austero e endurecido,
Que um dia, de enjoado ou distraido,
Deixou matar seu filho no Calvário,

Sorriu com rir estranho, ouvindo o vário
Tumultuoso coro e alarido
Do povo insipiente, que, atrevido,
Erguia a voz em grita ao seu sacrário:

« — Vanitas vanitatum! (disse). É certo
Que o homem vão medita mil mudanças,
Sem achar mais do que erro e desacerto.

Muito antes de nascerem vossos pais
D’um barro vil,

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Evolução

Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo
tronco ou ramo na incĂłgnita floresta…
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquĂ­ssimo inimigo…

Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
O, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paĂşl, glauco pascigo…

Hoje sou homem, e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, da imensidade…

Interrogo o infinito e Ă s vezes choro…
Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente Ă  liberdade.

Mea Culpa

NĂŁo duvido que o mundo no seu eixo
Gire suspenso e volva em harmonia;
Que o homem suba e vá da noite ao dia,
E o homem vá subindo insecto o seixo.

NĂŁo chamo a Deus tirano, nem me queixo,
Nem chamo ao céu da vida noite fria;
NĂŁo chamo Ă  existencia hora sombria;
Acaso, Ă  ordem; nem Ă  lei desleixo.

A Natureza Ă© minha mĂŁe ainda…
É minha mĂŁe… Ah, se eu Ă  face linda
NĂŁo sei sorrir: se estou desesperado;

Se nada há que me aqueça esta frieza;
Se estou cheio de fel e de tristeza…
É de crer que só eu seja o culpado!

Divina Comédia

Erguendo os braços para o céu distante
E apostrofando os deuses invisĂ­veis,
Os homens clamam: — «Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triunfante,

Porque Ă© que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e sĂł gera, inestinguĂ­veis,
Dor, pecado, ilusĂŁo, lutas horrĂ­veis,
N’um turbilhĂŁo cruel e delirante…

Pois nĂŁo era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda nĂŁo existe,
Ter ficado a dormir eternamente?

Porque é que para a dor nos evocastes?»
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem: — «Homens! por que é que nos criastes?»

Lacrimae Rerum

Noite, irmĂŁ da RazĂŁo e irmĂŁ da Morte,
Quantas vezes tenho eu interrogado
Teu verbo, teu oráculo sagrado,
Confidente e intérprete da Sorte!

Aonde sĂŁo teus sĂłis, como corte
De almas inquietas, que conduz o Fado?
E o homem porque vaga desolado
E em vĂŁo busca a certeza que o conforte?

Mas, na pompa de imenso funeral,
Muda, a noite, sinistra e triunfal,
Passa volvendo as horas vagarosas…

É tudo, em torno a mim, dúvida e luto;
E, perdido num sonho imenso, escuto
O suspiro das coisas tenebrosas…

MĂŁe…

Mãe — que adormente este viver dorido,
E me vele esta noite de tal frio,
E com as mĂŁos piedosas ate o fio
Do meu pobre existir, meio partido…

Que me leve consigo, adormecido,
Ao passar pelo sĂ­tio mais sombrio…
Me banhe e lave a alma lá no rio
Da clara luz do seu olhar querido…

Eu dava o meu orgulho de homem — dava
Minha estéril ciência, sem receio,
E em débil criancinha me tornava.

Descuidada, feliz, dócil também,
Se eu pudesse dormir sobre o teu seio,
Se tu fosses, querida, a minha mĂŁe!

Se Comparo Poder ou Ouro ou Fama

Se comparo poder ou ouro ou fama,
Venturas que em si tĂŞm occulto o damno,
Com aquele outro affecto soberano,
Que amor se diz e Ă© luz de pura chama,

Vejo que sĂŁo bem como arteira dama,
Que sob honesto riso esconde o engano,
E o que as segue, como homem leviano
Que por um vĂŁo prazer deixa quem ama.

Nasce do orgulho aquele esteril goso
E a glĂłria d’ele Ă© cousa fraudulenta,
Como quem na vaidade tem a palma:

Tem na paixĂŁo seu brilho mais formoso
E das paixões tambem some-o a tormenta…
Mas a glĂłria do amor… essa vem d’alma!