Sonetos sobre Mundo de Antero de Quental

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Sonetos de mundo de Antero de Quental. Leia este e outros sonetos de Antero de Quental em Poetris.

Anima Mea

Estava a Morte ali, em pé, diante,
Sim, diante de mim, como serpente
Que dormisse na estrada e de repente
Se erguesse sob os pés do caminhante.

Era de ver a fúnebre bachante!
Que torvo olhar! que gesto de demente!
E eu disse-lhe: «Que buscas, impudente,
Loba faminta, pelo mundo errante?»

— Não temas, respondeu (e uma ironia
Sinistramente estranha, atroz e calma,
Lhe torceu cruelmente a boca fria).

Eu não busco o teu corpo… Era um troféu
Glorioso de mais… Busco a tua alma —
Respondi-lhe: «A minha alma já morreu!»

Uma Amiga

Aqueles que eu amei, não sei que vento
Os dispersou no mundo, que os não vejo…
Estendo os bracos e nas trevas beijo
Visões que a noite evoca o sentimento…

Outros me causam mais cruel tormento
Que a saudade dos mortos… que eu invejo…
Passam por mim… mas como que tem pejo
Da minha soledade e abatimento!

Daquela primavera venturosa
Não resta uma flor so, uma so rosa…
Tudo o vento varreu, queimou o gelo!

Tu so foste fiel – tu, como dantes,
Inda volves teus olhos radiantes…
Para ver o meu mal… e escarnece-lo!

Acordando

Em sonho, às vezes, se o sonhar quebranta
Este meu vão sofrer; esta agonia,
Como sobe cantando a cotovia,
Para o céu a minh’alma sobe e canta.

Canta a luz, a alvorada, a estrela santa,
Que ao mundo traz piedosa mais um dia…
Canta o enlevo das cousas, a alegria
Que as penetra de amor e as alevanta…

Mas, de repente, um vento humido e frio
Sopra sobre o meu sonho: um calafrio
Me acorda. — A noite é negra e muda: a dor

Cá vela, como d’antes, ao meu lado…
Os meus cantos de luz, anjo adorado,
São sonho só, e sonho o meu amor!

A um Crucifixo

Há mil anos, bom Cristo, ergueste os magros braços
E clamaste da cruz: há Deus! e olhaste, ó crente,
O horizonte futuro e viste, em tua mente,
Um alvor ideal banhar esses espaços!

Por que morreu sem eco, o eco de teus passos,
E de tua palavra (ó Verbo!) o som fremente?
Morreste… ah! dorme em paz! não volvas, que descrente
Arrojaras de novo à campa os membros lassos…

Agora, como então, na mesma terra erma,
A mesma humanidade é sempre a mesma enferma,
Sob o mesmo ermo céu, frio como um sudário…

E agora, como então, viras o mundo exangue,
E ouviras perguntar — de que serviu o sangue
Com que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário? —

Consulta

Chamei em volta do meu frio leito
As memórias melhores de outra idade,
Formas vagas, que às noites, com piedade,
Se inclinam, a espreitar, sobre o meu peito…

E disse-lhes: No mundo imenso e estreito
Valia a pena, acaso, em ansiedade
Ter nascido? Dizei-mo com verdade,
Pobres memórias que eu ao seio estreito.

Mas elas perturbaram-se – coitadas!
E empalideceram, contristadas,
Ainda a mais feliz, a mais serena…

E cada uma delas, lentamente,
Com um sorriso mórbido, pungente,
Me respondeu: – Não, não valia a pena!

Tese e Antítese

I

Já não sei o que vale a nova idéia,
Quando a vejo nas ruas desgrenhada,
Torva no aspecto, à luz da barricada,
Como bacchante após lúbrica ceia…

Sanguinolento o olhar se lhe incendeia;
Respira fumo e fogo embriagada:
A deusa de alma vasta e sossegada
Ei-la presa das fúrias de Medeia!

Um século irritado e truculento
Chama à epilepsia pensamento,
Verbo ao estampido de pelouro e obuz…

Mas a idea é n’um mundo inalterável,
N’um cristalino céu, que vive estável…
Tu, pensamento, não és fogo, és luz!

II

N’um céu intemerato e cristalino
Pode habitar talvez um Deus distante,
Vendo passar em sonho cambiante
O Ser, como espectáculo divino.

Mas o homem, na terra onde o destino
O lançou, vive e agita-se incessante:
Enche o ar da terra o seu pulmão possante…
Cá da terra blasfema ou ergue um hino…

A idéia encarna em peitos que palpitam:
O seu pulsar são chamas que crepitam,
Paixões ardentes como vivos sóis!

Combatei pois na terra árida e bruta,

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Redenção

I

Vozes do mar, das árvores, do vento!
Quando às vezes, n’um sonho doloroso,
Me embala o vosso canto poderoso,
Eu julgo igual ao meu vosso tormento…

Verbo crepuscular e íntimo alento
Das cousas mudas; psalmo misterioso;
Não serás tu, queixume vaporoso,
O suspiro do mundo e o seu lamento?

Um espírito habita a imensidade:
Uma ânsia cruel de liberdade
Agita e abala as formas fugitivas.

E eu compreendo a vossa língua estranha,
Vozes do mar, da selva, da montanha…
Almas irmãs da minha, almas cativas!

II

Não choreis, ventos, árvores e mares,
Coro antigo de vozes rumorosas,
Das vozes primitivas, dolorosas
Como um pranto de larvas tumulares…

Da sombra das visões crepusculares
Rompendo, um dia, surgireis radiosas
D’esse sonho e essas ânsias afrontosas,
Que exprimem vossas queixas singulares…

Almas no limbo ainda da existência,
Acordareis um dia na Consciência,
E pairando, já puro pensamento,

Vereis as Formas, filhas da Ilusão,
Cair desfeitas, como um sonho vão…
E acabará por fim vosso tormento.

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Amaritudo

Só por ti, astro ainda e sempre oculto,
Sombra do Amor e sonho da Verdade,
Divago eu pelo mundo e em ansiedade
Meu próprio coração em mim sepulto.

De templo em templo, em vão, levo o meu culto,
Levo as flores d’uma íntima piedade.
Vejo os votos da minha mocidade
Receberem somente escárnio e insulto.

À beira do caminho me assentei…
Escutarei passar o agreste vento,
Exclamando: assim passe quando amei! —

Oh minh’alma, que creste na virtude!
O que será velhice e desalento,
Se isto se chama aurora e juventude?

Tormanto do Ideal

Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,

Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre:
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a côr, bem como a nuvem que erra
Ao pôr do sol e sobre o mar discorre.

Pedindo à fórma, em vão, a idea pura,
Tropéço, em sombras, na materia dura.
E encontro a imperfeição de quanto existe.

Recebi o baptismo dos poetas,
E assentado entre as fórmas incompletas
Para sempre fiquei palido e triste.

Elogio da Morte

I

Altas horas da noite, o Inconsciente
Sacode-me com força, e acordo em susto.
Como se o esmagassem de repente,
Assim me pára o coração robusto.

Não que de larvas me povôe a mente
Esse vácuo nocturno, mudo e augusto,
Ou forceje a razão por que afugente
Algum remorso, com que encara a custo…

Nem fantasmas nocturnos visionários,
Nem desfilar de espectros mortuários,
Nem dentro de mim terror de Deus ou Sorte…

Nada! o fundo dum poço, húmido e morno,
Um muro de silêncio e treva em torno,
E ao longe os passos sepulcrais da Morte.

II

Na floresta dos sonhos, dia a dia,
Se interna meu dorido pensamento.
Nas regiões do vago esquecimento
Me conduz, passo a passo, a fantasia.

Atravesso, no escuro, a névoa fria
D’um mundo estranho, que povôa o vento,
E meu queixoso e incerto sentimento
Só das visões da noite se confia.

Que místicos desejos me enlouquecem?
Do Nirvana os abismos aparecem,
A meus olhos, na muda imensidade!

N’esta viagem pelo ermo espaço,

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Evolução

Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo
tronco ou ramo na incógnita floresta…
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo…

Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
O, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paúl, glauco pascigo…

Hoje sou homem, e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, da imensidade…

Interrogo o infinito e às vezes choro…
Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.

Transcendentalismo

(A J. P. Oliveira Martins)

Já sossega, depois de tanta luta,
Já me descansa em paz o coração.
Caí na conta, enfim, de quanto é vão
O bem que ao Mundo e à Sorte se disputa.

Penetrando, com fronte não enxuta,
No sacrário do templo da Ilusão,
Só encontrei, com dor e confusão,
Trevas e pó, uma matéria bruta…

Não é no vasto mundo — por imenso
Que ele pareça à nossa mocidade —
Que a alma sacia o seu desejo intenso…

Na esfera do invisível, do intangível,
Sobre desertos, vácuo, soledade,
Vôa e paira o espírito impassível!

Espiritualismo

I

Como um vento de morte e de ruína,
A Dúvida soprou sobre o Universo.
Fez-se noite de súbito, imerso
O mundo em densa e algida neblina.

Nem astro já reluz, nem ave trina,
Nem flor sorri no seu aéreo berço.
Um veneno subtil, vago, disperso,
Empeçonhou a criação divina.

E, no meio da noite monstruosa,
Do silêncio glacial, que paira e estende
O seu sudário, d’onde a morte pende,

Só uma flor humilde, misteriosa,
Como um vago protesto da existência,
Desabroxa no fundo da Consciência.

II

Dorme entre os gelos, flor imaculada!
Luta, pedindo um ultimo clarão
Aos sóis que ruem pela imensidão,
Arrastando uma auréola apagada…

Em vão! Do abismo a boca escancarada
Chama por ti na gélida amplidão…
Sobe do poço eterno, em turbilhão,
A treva primitiva conglobada…

Tu morrerás também. Um ai supremo,
Na noite universal que envolve o mundo,
Ha-de ecoar, e teu perfume extremo

No vácuo eterno se esvairá disperso,
Como o alento final d’um moribundo,
Como o último suspiro do Universo.

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Solemnia Verba

Disse ao meu coração: Olha por quantos
Caminhos vãos andámos! Considera
Agora, desta altura, fria e austera,
Os ermos que regaram nossos prantos…

Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!
E a noite, onde foi luz a Primavera!
Olha a teus pés o mundo e desespera,
Semeador de sombras e quebrantos!

Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do pensar tornado crente,

Respondeu: Desta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se isto é vida,
Nem foi demais o desengano e a dor.

A um Poeta

Tu que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno.

Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno
Afugentou as larvas tumulares…
Para surgir do seio desses mares
Um mundo novo espera só um aceno…

Escuta! É a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! São canções…
Mas de guerra… e são vozes de rebate!

Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!

Uma Amiga

Aqueles que eu amei, não sei que vento
Os dispersou no mundo, que os não vejo…
Estendo os braços e nas trevas beijo
Visões que a noite evoca o sentimento…

Outros me causam mais cruel tormento
Que a saudade dos mortos… que eu invejo…
Passam por mim… mas como que tem pejo
Da minha soledade e abatimento!

Daquela primavera venturosa
Não resta uma flor só, uma só rosa…
Tudo o vento varreu, queimou o gelo!

Tu só foste fiel – tu, como dantes,
Inda volves teus olhos radiantes…
Para ver o meu mal… e escarnecê-lo!

Nox

Noite, vão para ti meus pensamentos,
Quando olho e vejo, à luz cruel do dia,
Tanto estéril lutar, tanta agonia,
E inúteis tantos ásperos tormentos…

Tu, ao menos, abafas os lamentos,
Que se exalam da trágica enxovia…
O eterno Mal, que ruge e desvaria,
Em ti descansa e esquece alguns momentos…

Oh! Antes tu também adormecesses
Por uma vez, e eterna, inalterável,
Caindo sobre o Mundo, te esquecesses,

E ele, o Mundo, sem mais lutar nem ver,
Dormisse no teu seio inviolável,
Noite sem termo, noite do Não-ser!

Poz-te Deus Sobre a Fronte a Mão Piedosa

Poz-te Deus sobre a fronte a mão piedosa:
O que fada o poeta e o soldado
Volveu a ti o olhar, de amor velado,
E disse-te: «vae, filha, sê formosa!»

E tu, descendo na onda harmoniosa,
Pousaste n’este solo angustiado,
Estrela envolta n’um clarão sagrado,
Do teu limpido olhar na luz radiosa…

Mas eu… posso eu acaso merecer-te?
Deu-te o Senhor, mulher! o que é vedado,
Anjo! Deu-te o Senhor um mundo á parte.

E a mim, a quem deu olhos para ver-te,
Sem poder mais… a mim o que me ha dado?
Voz, que te cante, e uma alma para amar-te!

Voz de Outono

Ouve tu, meu cansado coração,
O que te diz a voz da Natureza:
— «Mais te valera, nú e sem defesa,
Ter nascido em aspérrima soidão,

Ter gemido, ainda infante, sobre o chão
Frio e cruel da mais cruel
deveza, Do que embalar-te a Fada da Beleza,
Como embalou, no berço da Ilusão!

Mais valera à tua alma visionária
Silenciosa e triste ter passado
Por entre o mundo hostil e a turba vária,

(Sem ver uma só flor, das mil, que amaste)
Com ódio e raiva e dor… que ter sonhado
Os sonhos ideais que tu sonhaste!» —

Lamento

Um diluvio de luz cae da montanha:
Eis o dia! eis o sol! o esposo amado!
Onde ha por toda a terra um só cuidado
Que não dissipe a luz que o mundo banha?

Flor a custo medrada em erma penha,
Revolto mar ou golfo congelado,
Aonde ha ser de Deus tão olvidado
Para quem paz e alivio o céo não tenha?

Deus é Pae! Pae de toda a creatura:
E a todo o ser o seu amor assiste:
De seus filhos o mal sempre é lembrado…

Ah! se Deus a seus filhos dá ventura
N’esta hora santa… e eu só posso ser triste…
Serei filho, mas filho abandonado!