Visita
Adornou o meu quarto a flor do cardo,
Perfumei-o de almiscar recendente;
Vesti-me com a purpura fulgente,
Ensaiando meus cantos, como um bardo;Ungi as mĂŁos e a face com o nardo
Crescido nos jardins do Oriente,
A receber com pompa, dignamente,
Mysteriosa visita a quem aguardo.Mas que filha de reis, que anjo ou que fada
Era essa que assim a mim descia,
Do meu casebre ĂĄ humida pousada?…Nem princezas, nem fadas. Era, flor,
Era a tua lembrança que batia
Ăs portas de ouro e luz do meu amor!
Sonetos sobre Face de Antero de Quental
4 resultadosElogio da Morte
I
Altas horas da noite, o Inconsciente
Sacode-me com força, e acordo em susto.
Como se o esmagassem de repente,
Assim me påra o coração robusto.Não que de larvas me povÎe a mente
Esse vĂĄcuo nocturno, mudo e augusto,
Ou forceje a razĂŁo por que afugente
Algum remorso, com que encara a custo…Nem fantasmas nocturnos visionĂĄrios,
Nem desfilar de espectros mortuĂĄrios,
Nem dentro de mim terror de Deus ou Sorte…Nada! o fundo dum poço, hĂșmido e morno,
Um muro de silĂȘncio e treva em torno,
E ao longe os passos sepulcrais da Morte.II
Na floresta dos sonhos, dia a dia,
Se interna meu dorido pensamento.
Nas regiÔes do vago esquecimento
Me conduz, passo a passo, a fantasia.Atravesso, no escuro, a névoa fria
D’um mundo estranho, que povĂŽa o vento,
E meu queixoso e incerto sentimento
SĂł das visĂ”es da noite se confia.Que mĂsticos desejos me enlouquecem?
Do Nirvana os abismos aparecem,
A meus olhos, na muda imensidade!N’esta viagem pelo ermo espaço,
Mea Culpa
NĂŁo duvido que o mundo no seu eixo
Gire suspenso e volva em harmonia;
Que o homem suba e vĂĄ da noite ao dia,
E o homem vĂĄ subindo insecto o seixo.NĂŁo chamo a Deus tirano, nem me queixo,
Nem chamo ao céu da vida noite fria;
NĂŁo chamo Ă existencia hora sombria;
Acaso, Ă ordem; nem Ă lei desleixo.A Natureza Ă© minha mĂŁe ainda…
Ă minha mĂŁe… Ah, se eu Ă face linda
Não sei sorrir: se estou desesperado;Se nada hå que me aqueça esta frieza;
Se estou cheio de fel e de tristeza…
Ă de crer que sĂł eu seja o culpado!
Contemplação
Sonho de olhos abertos, caminhando
NĂŁo entre as formas jĂĄ e as aparĂȘncias,
Mas vendo a face imĂłvel das essĂȘncias,
Entre idĂ©ias e espĂritos pairando…Que Ă© o mundo ante mim? fumo ondeando,
VisĂ”es sem ser, fragmentos de existĂȘncias…
Uma nĂ©voa de enganos e impotĂȘncias
Sobre vĂĄcuo insondĂĄvel rastejando…E d’entre a nĂ©voa e a sombra universais
SĂł me chega um murmĂșrio, feito de ais…
Ă a queixa, o profundĂssimo gemidoDas coisas, que procuram cegamente
Na sua noite e dolorosamente
Outra luz, outro fim sĂł presentido…