Sonetos sobre Horas de Florbela Espanca

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Sonetos de horas de Florbela Espanca. Leia este e outros sonetos de Florbela Espanca em Poetris.

Soror Saudade

A Américo Durão

Irmã, Soror Saudade, me chamaste…
E na minh’alma o nome iluminou-se
Como um vitral ao sol, como se fosse
A luz do próprio sonho que sonhaste.

Numa tarde de Outono o murmuraste;
Toda a mágoa do Outono ele me trouxe;
Jamais me hão-de chamar outro mais doce;
Com ele bem mais triste me tornaste…

E baixinho, na alma de minh’alma,
Como bênção de sol que afaga e acalma,
Nas horas más de febre e de ansiedade,

Como se fossem pétalas caindo,
Digo as palavras desse nome lindo
Que tu me deste: “Irmã, Soror Saudade”…

À Janela De Garcia De Resende

Janela antiga sobre a rua plana…
Ilumina-a o luar com seu clarão…
Dantes, a descansar de luta insana,
Fui, talvez, flor no poético balcão…

Dantes! Da minha glória altiva e ufana,
Talvez…Quem sabe?…Tonto de ilusão,
Meu rude coração de alentejana
Me palpitasse ao luar nesse balcão…

Mística dona, em outras Primaveras,
Em refulgentes horas de outras eras,
Vi passar o cortejo ao sol doirado…

Bandeiras! Pajens! O pendão real!
E na tua mão, vermelha, triunfal,
Minha divisa: um coração chagado!…

Cinzento

Poeiras de crepúsculos cinzentos.
Lindas rendas velhinhas, em pedaços,
Prendem-se aos meus cabelos, aos meus braços,
Como brancos fantasmas, sonolentos…

Monges soturnos deslizando lentos,
Devagarinho, em misteriosos passos…
Perde-se a luz em lânguidos cansaços…
Ergue-se a minha cruz dos desalentos!

Poeiras de crepúsculos tristonhos,
Lembram-me o fumo leve dos meus sonhos,
A névoa das saudades que deixaste!

Hora em que teu olhar me deslumbrou…
Hora em que a tua boca me beijou…
Hora em que fumo e névoa te tornaste…

Sonho Vago

Um sonho alado que nasceu um instante,
Erguido ao alto em horas de demência…
Gotas de água que tombam em cadência
Na minh’alma tristíssima, distante…

Onde está ele, o Desejado? O Infante?
O que há-de vir e amar-me em doida ardência?
O das horas de mágoa e penitência?
O Príncipe Encantado? O Eleito? O Amante?

E neste sonho eu já nem sei quem sou…
O brando marulhar dum longo beijo
Que não chegou a dar-se e que passou…

Um fogo-fátuo rútilo, talvez…
E eu ando a procurar-te e já te vejo!
E tu já me encontraste e não me vês!…

Se tu viesses ver-me…

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços…

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca… o eco dos teus passos…
O teu riso de fonte… os teus abraços…
Os teus beijos… a tua mão na minha…

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca…
Quando os olhos se me cerram de desejo…
E os meus braços se estendem para ti…

A Minha Dor

A minha Dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.

Os sinos têm dobres de agonias
Ao gemer, comovidos, o seu mal…
E todos têm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias…

A minha Dor é um convento. Há lírios
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!

Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém ouve… ninguém vê… ninguém…

Esfinge

Sou filha da charneca erma e selvagem.
Os giestais, por entre os rosmaninhos,
Abrindo os olhos d’oiro, p’los caminhos,
Desta minh’alma ardente são a imagem.

Embalo em mim um sonho vão, miragem:
Que tu e eu, em beijos e carinhos,
Eu a Charneca e tu o Sol, sozinhos,
Fôssemos um pedaço de paisagem!

E à noite, à hora doce da ansiedade
Ouviria da boca do luar
O De Profundis triste da saudade…

E à tua espera, enquanto o mundo dorme,
Ficaria, olhos quietos, a cismar…
Esfinge olhando a planície enorme…

A Noite Desce

Como pálpebras roxas que tombassem
Sobre uns olhos cansados, carinhosas,
A noite desce… Ah! doces mãos piedosas
Que os meus olhos tristíssimos fechassem!

Assim mãos de bondade me beijassem!
Assim me adormecessem! Caridosas
Em braçados de lírios, de mimosas,
No crepúsculo que desce me enterrassem!

A noite em sombra e fumo se desfaz…
Perfume de baunilha ou de lilás,
A noite põe embriagada, louca!

E a noite vai descendo, sempre calma…
Meu doce Amor tu beijas a minh’alma
Beijando nesta hora a minha boca!

Anoitecer

A luz desmaia num fulgor d’aurora,
Diz-nos adeus religiosamente…
E eu, que não creio em nada, sou mais crente
Do que em menina, um dia, o fui… outrora…

Não sei o que em mim ri, o que em mim chora
Tenho bênçãos d’amor pra toda a gente!
Como eu sou pequenina e tão dolente
No amargo infinito desta hora!

Horas tristes que são o meu rosário…
Ó minha cruz de tão pesado lenho!
Meu áspero e intérmino Calvário!

E a esta hora tudo em mim revive:
Saudades de saudades que não tenho…
Sonhos que são os sonhos dos que eu tive…

Conto de Fadas

Eu trago-te nas mãos o esquecimento
Das horas más que tens vivido, Amor!
E para as tuas chagas o unguento
Com que sarei a minha própria dor.

Os meus gestos são ondas de Sorrento…
Trago no nome as letras de uma flor…
Foi dos meus olhos garços que um pintor
Tirou a luz para pintar o vento…

Dou-te o que tenho: o astro que dormita,
O manto dos crepúsculos da tarde,
O sol que é d’oiro, a onda que palpita.

Dou-te comigo o mundo que Deus fez!
– Eu sou Aquela de quem tens saudade,
A Princesa do conto: “Era uma vez…”

A Minha Piedade

A Bourbon e Meneses

Tenho pena de tudo quanto lida
Neste mundo, de tudo quanto sente,
Daquele a quem mentiram, de quem mente,
Dos que andam pés descalços pela vida,

Da rocha altiva, sobre o monte erguida,
Olhando os céus ignotos frente a frente,
Dos que não são iguais à outra gente,
E dos que se ensangüentam na subida!

Tenho pena de mim… pena de ti…
De não beijar o riso duma estrela…
Pena dessa má hora em que nasci…

De não ter asas para ir ver o céu…
De não ser Esta… a Outra… e mais Aquela…
De ter vivido e não ter sido Eu…

Deixai Entrar A Morte

Deixai entrar a Morte, a Iluminada,
A que vem pra mim, pra me levar.
Abri todas as portas par em par
Como asas a bater em revoada.

Quem sou eu neste mundo?A deserdada,
A que prendeu nas mãos todo o luar,
A vida inteira, o sonho, a terra, o mar,
E que, ao abri-las, não encontrou nada!

Ó Mãe! Ó minha Mãe, pra que nasceste?
Entre agonias e em dores tamanhas
Pra que foi, dize lá, que me trouxeste

Pra que eu tivesse sido
Somente o fruto amargo das entranhas
Dum lírio que em má hora foi nascido!…

Prince Charmant

A Raul Proença

No lânguido esmaecer das amorosas
Tardes que morrem voluptuosamente
Procurei-O no meio de toda a gente.
Procurei-O em horas silenciosas!

Ó noites da minh’alma tenebrosas!
Boca sangrando beijos, flor que sente…
Olhos postos num sonho, humildemente…
Mãos cheias de violetas e de rosas…

E nunca O encontrei!…Prince Charmant…
Como audaz cavaleiro em velhas lendas
Virá, talvez, nas névoas da manhã!

Em toda a nossa vida anda a quimera
Tecendo em frágeis dedos frágeis rendas…
— Nunca se encontra Aquele que se espera!…

Languidez

Tardes da minha terra, doce encanto,
Tardes duma pureza de açucenas,
Tardes de sonho, as tardes de novenas,
Tardes de Portugal, as tardes de Anto,

Como eu vos quero e amo! Tanto! Tanto!
Horas benditas, leves como penas,
Horas de fumo e cinza, horas serenas,
Minhas horas de dor em que eu sou santo!

Fecho as pálpebras roxas, quase pretas,
Que poisam sobre duas violetas,
Asas leves cansadas de voar …

E a minha boca tem uns beijos mudos …
E as minhas mãos, uns pálidos veludos,
Traçam gestos de sonho pelo ar …

Hora que Passa

Vejo-me triste, abandonada e só
Bem como um cão sem dono e que o procura
Mais pobre e desprezada do que Job
A caminhar na via da amargura!

Judeu Errante que a ninguém faz dó!
Minh’alma triste, dolorida, escura,
Minh’alma sem amor é cinza, é pó,
Vaga roubada ao Mar da Desventura!

Que tragédia tão funda no meu peito!…
Quanta ilusão morrendo que esvoaça!
Quanto sonho a nascer e já desfeito!

Deus! Como é triste a hora quando morre…
O instante que foge, voa, e passa…
Fiozinho d’água triste… a vida corre…

Noitinha

A noite sobre nós se debruçou…
Minha alma ajoelha, põe as mãos e ora!
O luar, pelas colinas, nesta hora,
É água dum gomil que se entornou…

Não sei quem tanta pérola espalhou!
Murmura alguém pelas quebradas fora…
Flores do campo, humildes, mesmo agora.
A noite, os olhos brandos, lhes fechou…

Fumo beijando o colmo dos casais…
Serenidade idílica de fontes,
E a voz dos rouxinóis nos salgueirais…

Tranquilidade… calma… anoitecer…
Num êxtase, eu escuto pelos montes
O coração das pedras a bater…

Castelã da Tristeza

Altiva e couraçada de desdém,
Vivo sozinha em meu castelo: a Dor!
Passa por ele a luz de todo o amor …
E nunca em meu castelo entrou alguém!

Castelã da Tristeza, vês? … A quem? …
– E o meu olhar é interrogador –
Perscruto, ao longe, as sombras do sol-pôr …
Chora o silêncio … nada … ninguém vem …

Castelã da Tristeza, porque choras
Lendo, toda de branco, um livro de horas,
À sombra rendilhada dos vitrais? …

À noite, debruçada, plas ameias,
Porque rezas baixinho? … Porque anseias? …
Que sonho afagam tuas mãos reais? …

Princesa Desalento

Minh’alma é a Princesa Desalento,
Como um Poeta lhe chamou, um dia.
É revoltada, trágica, sombria,
Como galopes infernais de vento!

É frágil como o sonho dum momento,
Soturna como preces de agonia,
Vive do riso duma boca fria!
Minh’alma é a Princesa Desalento…

Altas horas da noite ela vagueia…
E ao luar suavíssimo, que anseia,
Põe-se a falar de tanta coisa morta!

O luar ouve a minh’alma, ajoelhado,
E vai traçar, fantástico e gelado,
A sombra duma cruz à tua porta…

Passeio ao Campo

Meu Amor! Meu Amante! Meu Amigo!
Colhe a hora que passa, hora divina,
Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!
Sinto-me alegre e forte! Sou menina!

Eu tenho, Amor, a cinta esbelta e fina…
Pele doirada de alabastro antigo…
Frágeis mãos de madona florentina…
– Vamos correr e rir por entre o trigo! –

Há rendas de gramíneas pelos montes…
Papoilas rubras nos trigais maduros…
Água azulada a cintilar nas fontes…

E à volta, Amor… tornemos, nas alfombras
Dos caminhos selvagens e escuros,
Num astro só as nossas duas sombras!…

As Minhas Ilusões

Hora sagrada dum entardecer
De Outono, à beira-mar, cor de safira,
Soa no ar uma invisível lira …
O sol é um doente a enlanguescer …

A vaga estende os braços a suster,
Numa dor de revolta cheia de ira,
A doirada cabeça que delira
Num último suspiro, a estremecer!

O sol morreu … e veste luto o mar …
E eu vejo a urna de oiro, a balouçar,
À flor das ondas, num lençol de espuma.

As minhas Ilusões, doce tesoiro,
Também as vi levar em urna de oiro,
No mar da Vida, assim … uma por uma …