À Virgem Santíssima
Cheia de Graça, Mãe de Misericórdia
N’um sonho todo feito de incerteza,
De nocturna e indizível ansiedade,
É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza…Não era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade…
Era outra luz, era outra suavidade,
Que até nem sei se as há na natureza…Um místico sofrer… uma ventura
Feita só do perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira…Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa…
E deixa-me sonhar a vida inteira!
Sonetos sobre Mães de Antero de Quental
6 resultadosNa Mão de Deus
Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depois do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,Selvas, mares, areias do deserto…
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!
Homo
Nenhum de vós ao certo me conhece,
Astros do espaço, ramos do arvoredo,
Nenhum adivinhou o meu segredo,
Nenhum interpretou a minha prece…Ninguém sabe quem sou… e mais, parece
Que há dez mil anos já, neste degredo,
Me vê passar o mar, vê-me o rochedo
E me contempla a aurora que alvorece…Sou um parto da Terra monstruoso;
Do húmus primitivo e tenebroso
Geração casual, sem pai nem mãe…Misto infeliz de trevas e de brilho,
Sou talvez Satanás; — talvez um filho
Bastardo de Jeová; — talvez ninguém!
Mea Culpa
Não duvido que o mundo no seu eixo
Gire suspenso e volva em harmonia;
Que o homem suba e vá da noite ao dia,
E o homem vá subindo insecto o seixo.Não chamo a Deus tirano, nem me queixo,
Nem chamo ao céu da vida noite fria;
Não chamo à existencia hora sombria;
Acaso, à ordem; nem à lei desleixo.A Natureza é minha mãe ainda…
É minha mãe… Ah, se eu à face linda
Não sei sorrir: se estou desesperado;Se nada há que me aqueça esta frieza;
Se estou cheio de fel e de tristeza…
É de crer que só eu seja o culpado!
Hino À Razão
Razão, irmã do Amor e da Justiça,
Mais uma vez escuta a minha prece.
É a voz dum coração que te apetece,
Duma alma livre só a ti submissa.Por ti é que a poeira movediça
De astros, sóis e mundos permanece;
E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroísmo medra e viça.Por ti, na arena trágica, as nações
buscam a liberdade entre clarões;
e os que olham o futuro e cismam, mudos,Por ti podem sofrer e não se abatem,
Mãe de filhos robustos que combatem
Tendo o teu nome escrito em seus escudos!
Mãe…
Mãe — que adormente este viver dorido,
E me vele esta noite de tal frio,
E com as mãos piedosas ate o fio
Do meu pobre existir, meio partido…Que me leve consigo, adormecido,
Ao passar pelo sítio mais sombrio…
Me banhe e lave a alma lá no rio
Da clara luz do seu olhar querido…Eu dava o meu orgulho de homem — dava
Minha estéril ciência, sem receio,
E em débil criancinha me tornava.Descuidada, feliz, dócil também,
Se eu pudesse dormir sobre o teu seio,
Se tu fosses, querida, a minha mãe!