Sonetos sobre MĂşsica de Cruz e Souza

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Sonetos de mĂşsica de Cruz e Souza. Leia este e outros sonetos de Cruz e Souza em Poetris.

Frutas E Flores

Laranjas e morangos — quanto Ă s frutas,
Quanto às flores, porém, ah! quanto às flores,
Trago-te dálias rubras, d’essas cores
Das brilhantes auroras impolutas.

Venho de ouvir as misteriosas lutas
Do mar chorando lágrimas de amores;
Isto Ă©, venho de estar entre os verdores
De um sĂ­tio cheio de asperezas brutas,

Mas onde as almas — pássaros que voam —
Vivem sorrindo Ă s mĂşsicas que ecoam
Dos campos livres na rural pobreza.

Trago-te frutas, flores, sĂł apenas,
Porque não pude, irmã das açucenas,
Trazer-te o mar e toda a natureza!

ProdĂ­gio!

Como o Rei Lear nĂŁo sentes a tormenta
Que te desaba na fatal cabeça!
(Que o cĂ©u d’estrelas todo resplandeça.)
A tua alma, na Dor, mais nobre aumenta.

A Desventura mais sanguinolenta
Sobre os teus ombros impiedosa desça,
Seja a treva mais funda e mais espessa,
Todo o teu ser em mĂşsicas rebenta.

Em mĂşsicas e em flores infinitas
De aromas e de formas esquisitas
E de um mistĂ©rio singular, nevoento…

Ah! sĂł da Dor o alto farol supremo
Consegue iluminar, de extremo a extremo,
o estranho mar genial do Sentimento!

Frutas De Maio

Maio chegou — alegre e transparente
Cheio de brilho e mĂşsica nos ares,
De cristalinos risos salutares,
Frio, porém, ó gota alvinitente.

Corre um fluido suave e odorescente
Das laranjeiras, como dos altares
O incenso — e, como a gaze azul dos mares,
Leve — há por tudo um beijo, docemente.

Isto bem cedo, de manhĂŁ — adiante
Pela tarde um sol calmo, agonizante,
Põe no horizonte resplendentes franjas.

Há carinhos, da luz em cada raio,
Filha — e eu que adoro este frescor de maio
Muito, mas muito — trago-te laranjas.

Primavera A Fora

Escute, excelentĂ­ssima: — Que aragens
Traz do árvoredo a fresca romaria;
Como este sol Ă© rubro de alegria,
Que tons de luz nas lĂ­mpidas paisagens.

Pois beba este ar e goze estas viagens
Das brancas aves, sinta esta harmonia
Da natureza e deste alegre dia
Que resplandece e ri-se nas ervagens.

Deixe lá fora estrangular-se o mundo…
Encare o céu e veja este fecundo
ChĂŁo que produz e que germina as flores.

Vamos, senhora, o braço à primavera,
E numa doce mĂşsica sincera,
Cante a balada eterna dos amores…

Tulipa Real

Carne opulenta, majestosa, fina,
Do sol gerada nos febris carinhos,
Há músicas, há cânticos, há vinhos
Na tua estranha boca sulferina.

A forma delicada e alabastrina
Do teu corpo de lĂ­mpidos arminhos
Tem a frescura virginal dos linhos
E da neve polar e cristalina.

Deslumbramento de luxĂşria e gozo,
Vem dessa carne o travo aciduloso
De um fruto aberto aos tropicais mormaços.

Teu coração lembra a orgia dos triclĂ­nios…
E os reis dormem bizarros e sangĂĽĂ­neos
Na seda branca e pulcra dos teus braços.

VisĂŁo Guiadora

Ă“ alma silenciosa e compassiva
Que conversas com os Anjos da Tristeza,
Ó delicada e lânguida beleza
Nas cadeias das lágrimas cativa.

Frágil, nervosa timidez lasciva,
Graça magoada, doce sutileza
De sombra e luz e da delicadeza
Dolorosa de mĂşsica aflitiva.

Alma de acerbo, amargurado exĂ­lio,
Perdida pelos céus num vago idílio
Com as almas e visões dos desolados.

Ă“ tu que Ă©s boa e porque Ă©s boa Ă©s bela,
Da Fé e da Esperança eterna estrela
Todo o caminho dos desamparados.

Velho

Estás morto, estás velho, estás cansado!
Como um sulco de lágrimas pungidas,
Ei-las, as rugas, as indefinidas
Noites do ser vencido e fatigado.

Envolve-te o crepĂşsculo gelado
Onde vai soturno amortalhando as vidas
Ante o responso em mĂşsicas gemidas
No fundo coração dilacerado.

A cabeça pendida de fadiga,
Sentes a morte taciturna e amiga
Que os teus nervos cĂ­rculos governa.

Estás velho, estás morto! Ó dor, delírio,
Alma despedaçada de martírio,
Ó desespero da Desgraça eterna!

Satanismo

NĂŁo me olhes assim, branca Arethusa,
Peregrina inspiração dos meus cantares;
NĂŁo me deixes a razĂŁo vagar confusa
Ao relâmpago ideal de teus olhares.

NĂŁo me olhes, oh! nĂŁo, porquanto eu penso
Envolvido no luar das minhas cismas,
Que o olhar que me dardejas — doido, imenso
Tem a rápida explosão dos aneurismas.

NĂŁo me olhes. Oh! nĂŁo, que o prĂłprio inferno
Problemático, fatal, cálido, eterno,
Nos teus olhos, mulher, se foi cravar!…

NĂŁo me olhes, oh! nĂŁo, que m’entolece
Tanta luz, tanto sol — e atĂ© parece
Que tens mĂşsicas cruĂ©is dentro do olhar!…

Pássaro Marinho

ManhĂŁ de maio, rosas pelo prado,
Gorjeios, pelas matas verdurosas
E a luz cantando o idĂ­lio de um noivado
Por entre as matas e por entre as rosas.

Uma toilette matinal que o alado
Corpo te enflora em graças vaporosas,
Mergulhas, como um pássaro rosado,
Nas cristalinas águas murmurosas.

Dás o bom dia ao Mar nesse mergulho
E das águas salgadas ao marulho
Sais, no esplendor dos límpidos espaços.

Trazes na carne um reflorir de vinhas,
Auroras, virgens mĂşsicas marinhas,
Acres aromas de algas e sargaços!

Ninho Abandonado

Ă€ distinta famĂ­lia Simas, pela morte de seu chefe,
o Ilmo. Sr. JoĂŁo da Silva Simas.

O vosso lar harmĂ´nico e tranqĂĽilo
Era um ninho de luz e de esperanças
Que como abelhas iriadas, mansas,
Nos vossos corações tinham asilo.

Havia lá por dentro tanta crença
E tanto amor purĂ­ssimo, cantando,
Que parecia um largo sol faiscando
Por majestosa catedral imensa.

Agora o ninho está desamparado!
Sumiu-se dele o pássaro adorado,
O mais ideal dos pássaros do ninho.

NĂŁo se ouve mais a mĂşsica sonora
Da sua voz — dentro do ninho, agora,
Paira a saudade como um bom carinho.

Um Ser

Um ser na placidez da Luz habita,
Entre os mistérios inefáveis mora.
Sente florir nas lágrimas que chora
A alma serena, celestial, bendita.

Um ser pertence Ă  mĂşsica infinita
Das Esferas, pertence Ă  luz sonora
Das estrelas do Azul e hora por hora
Na Natureza virginal palpita.

Um ser desdenha das fatais poeiras,
Dos miseráveis ouropéis mundanos
E de todas as frĂ­volas cegueiras…

Ele passa, atravessa entre os humanos,
Como a vida das vidas forasteiras
Fecundada nos prĂłprios desenganos.

A Harpa

Prende, arrebata, enleva, atrai, consola
A harpa tangida por convulsos dedos,
Vivem nela mistérios e segredos,
É berceuse, é balada, é barcarola.

Harmonia nervosa que desola,
Vento noturno dentre os arvoredos
A erguer fantasmas e secretos medos,
Nas suas cordas um soluço rola…

Tu’alma Ă© como esta harpa peregrina
Que tem sabor de mĂşsica divina
E sĂł pelos eleitos Ă© tangida.

Harpa dos céus que pelos céus murmura
E que enche os céus da música mais pura,
como de uma saudade indefinida.

DelĂ­rio Do Som

O Boabdil mais doce que um carinho,
O teu piano ebúrneo soluçava,
E cada nota, amor, que ele vibrava,
Era-me n’alma um sol desfeito em vinho.

Me parecia a mĂşsica do arminho,
O perfume do lĂ­rio que cantava,
A estrela-d’alva que nos cĂ©us entoava
Uma canção dulcíssima baixinho.

Incomparável, teu piano — e eu cria
Ver-te no espaço, em fluidos de harmonia,
Bela, serena, vaporosa e nua;

Como as visões olímpicas do Reno,
Cantando ao ar um delicioso treno
Vago e dolente, com uns tons de lua.

Irradiações

Às crianças

Qual da amplidão fantástica e serena
Ă€ luz vermelha e rĂştila da aurora
Cai, gota a gota, o orvalho que avigora
A imaculada e cândida açucena.

Como na cruz, da triste Madalena
Aos pés de Cristo, a lágrima sonora
Caia, rolou, qual bálsamo que irrora
A negra mágoa, a indefinida pena…

Caia por vós, esplêndidas crianças
Bando feliz de castas esperanças,
Sonhos da estrela no infinito imersas;

Caia por vĂłs, as mĂşsicas formosas,
Como um dilĂşvio matinal de rosas,
Todo o luar benéfico dos versos!

Claro E Escuro

Dentro — os cristais dos tempos fulgurantes,
MĂşsicas, pompas, fartos esplendores,
Luzes, radiando em prismas multicores,
Jarras formosas, lustres coruscantes,

PĂşrpuras ricas, galas flamejantes,
Cintilações e cânticos e flores;
Promiscuamente férvidos odores,
MĂłrbidos, quentes, finos, penetrantes.

Por entre o incenso, em lĂ­mpida cascata,
Dos siderais turĂ­bulos de prata,
Das sedas raras das mulheres nobres;

Clara explosão fantástica de aurora,
Deslumbramentos, nos altares! — Fora,
Uma falange intérmina de pobres.

Minh’alma Está Agora Penetrando

Minh’alma está agora penetrando
Lá na etérea plaga, cristalina!
Que mĂşsica meu Deus febril, divina
Nos páramos azuis vai retumbando!

AlĂ©m, d’áureo dossel se está rasgando
Custosa, de primor, esmeraldina
Diáfana, sutil, longa cortina
Enquanto céus se vão duplando!

Em grande pedestal marmorizado
De Paiva se divisa o busto enorme
Soberbo como o sol, de luz croado

De um lado o porvir — Antheu disforme
Dos lábios faz soltar pujante brado
Hosanas! nĂŁo morreu! apenas dorme.