Sonetos sobre Paz de Antero de Quental

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Sonetos de paz de Antero de Quental. Leia este e outros sonetos de Antero de Quental em Poetris.

A um Crucifixo

Há mil anos, bom Cristo, ergueste os magros braços
E clamaste da cruz: há Deus! e olhaste, ó crente,
O horizonte futuro e viste, em tua mente,
Um alvor ideal banhar esses espaços!

Por que morreu sem eco, o eco de teus passos,
E de tua palavra (Ăł Verbo!) o som fremente?
Morreste… ah! dorme em paz! nĂŁo volvas, que descrente
Arrojaras de novo Ă  campa os membros lassos…

Agora, como entĂŁo, na mesma terra erma,
A mesma humanidade Ă© sempre a mesma enferma,
Sob o mesmo ermo cĂ©u, frio como um sudário…

E agora, como entĂŁo, viras o mundo exangue,
E ouviras perguntar — de que serviu o sangue
Com que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário? —

Despondency

Deixá-la ir, a ave, a quem roubaram
Ninho e filhos e tudo, sem piedade…
Que a leve o ar sem fim da soledade
Onde as asas partidas a levaram…

Deixá-la ir, a vela, que arrojaram
Os tufões pelo mar, na escuridade,
Quando a noite surgiu da imensidade,
Quando os ventos do Sul levantaram…

Deixá-la ir, a alma lastimosa,
Que perdeu fé e paz e confiança,
Ă€ morte queda, Ă  morte silenciosa…

Deixá-la ir, a nota desprendida
D’um canto extremo… e a Ăşltima esperança…
E a vida… e o amor… Deixá-la ir, a vida!

Ă€ Virgem SantĂ­ssima

Cheia de Graça, Mãe de Misericórdia

N’um sonho todo feito de incerteza,
De nocturna e indizĂ­vel ansiedade,
É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza…

NĂŁo era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade…
Era outra luz, era outra suavidade,
Que atĂ© nem sei se as há na natureza…

Um mĂ­stico sofrer… uma ventura
Feita sĂł do perdĂŁo, sĂł da ternura
E da paz da nossa hora derradeira…

Ă“ visĂŁo, visĂŁo triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa…
E deixa-me sonhar a vida inteira!

Elogio da Morte

I

Altas horas da noite, o Inconsciente
Sacode-me com força, e acordo em susto.
Como se o esmagassem de repente,
Assim me pára o coração robusto.

NĂŁo que de larvas me povĂ´e a mente
Esse vácuo nocturno, mudo e augusto,
Ou forceje a razĂŁo por que afugente
Algum remorso, com que encara a custo…

Nem fantasmas nocturnos visionários,
Nem desfilar de espectros mortuários,
Nem dentro de mim terror de Deus ou Sorte…

Nada! o fundo dum poço, húmido e morno,
Um muro de silĂŞncio e treva em torno,
E ao longe os passos sepulcrais da Morte.

II

Na floresta dos sonhos, dia a dia,
Se interna meu dorido pensamento.
Nas regiões do vago esquecimento
Me conduz, passo a passo, a fantasia.

Atravesso, no escuro, a névoa fria
D’um mundo estranho, que povĂ´a o vento,
E meu queixoso e incerto sentimento
Só das visões da noite se confia.

Que mĂ­sticos desejos me enlouquecem?
Do Nirvana os abismos aparecem,
A meus olhos, na muda imensidade!

N’esta viagem pelo ermo espaço,

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Transcendentalismo

(A J. P. Oliveira Martins)

Já sossega, depois de tanta luta,
Já me descansa em paz o coração.
CaĂ­ na conta, enfim, de quanto Ă© vĂŁo
O bem que ao Mundo e Ă  Sorte se disputa.

Penetrando, com fronte nĂŁo enxuta,
No sacrário do templo da Ilusão,
SĂł encontrei, com dor e confusĂŁo,
Trevas e pĂł, uma matĂ©ria bruta…

Não é no vasto mundo — por imenso
Que ele pareça à nossa mocidade —
Que a alma sacia o seu desejo intenso…

Na esfera do invisĂ­vel, do intangĂ­vel,
Sobre desertos, vácuo, soledade,
VĂ´a e paira o espĂ­rito impassĂ­vel!

Luta

Fluxo e refluxo eterno…
JoĂŁo de Deus.

Dorme a noite encostada nas colinas.
Como um sonho de paz e esquecimento
Desponta a lua. Adormeceu o vento,
Adormeceram vales e campinas…

Mas a mim, cheia de atracções divinas,
Dá-me a noite rebate ao pensamento.
Sinto em volta de mim, tropel nevoento,
Os Destinos e as Almas peregrinas!

Insondável problema!… Apavorado
RecĂşa o pensamento!… E já prostrado
E estúpido á força de fadiga,

Fito inconsciente as sombras visionárias,
Enquanto pelas praias solitárias
Ecoa, Ăł mar, a tua voz antiga.

Diálogo

A cruz dizia Ă  terra onde assentava,
Ao vale obscuro, ao monte áspero e mudo:
— Que és tu, abismo e jaula, aonde tudo
Vive na dor e em luta cega e brava?

Sempre em trabalho, condenada escrava.
Que fazes tu de grande e bom, contudo?
Resignada, Ă©s sĂł lodo informe e rudo;
Revoltosa, Ă©s sĂł fogo e horrida lava…

Mas a mim não há alta e livre serra
Que me possa igualar!.. amor, firmeza,
Sou eu sĂł: sou a paz, tu Ă©s a guerra!

Sou o espĂ­rito, a luz!.. tu Ă©s tristeza,
Oh lodo escuro e vil! — Porém a terra
Respondeu: Cruz, eu sou a Natureza!

Lamento

Um diluvio de luz cae da montanha:
Eis o dia! eis o sol! o esposo amado!
Onde ha por toda a terra um sĂł cuidado
Que nĂŁo dissipe a luz que o mundo banha?

Flor a custo medrada em erma penha,
Revolto mar ou golfo congelado,
Aonde ha ser de Deus tĂŁo olvidado
Para quem paz e alivio o céo não tenha?

Deus Ă© Pae! Pae de toda a creatura:
E a todo o ser o seu amor assiste:
De seus filhos o mal sempre Ă© lembrado…

Ah! se Deus a seus filhos dá ventura
N’esta hora santa… e eu sĂł posso ser triste…
Serei filho, mas filho abandonado!

O Convertido

Entre os filhos dum século maldito
Tomei também lugar na ímpia mesa,
Onde, sob o folgar, geme a tristeza
Duma ânsia impotente de infinito.

Como os outros, cuspi no altar avito
Um rir feito de fel e de impureza…
Mas um dia abalou-se-me a firmeza,
Deu-me um rebate o coração contrito!

Erma, cheia de tédio e de quebranto,
Rompendo os diques ao represo pranto,
Virou-se para Deus minha alma triste!

Amortalhei na FĂ© o pensamento,
E achei a paz na inĂ©rcia e esquecimento…
SĂł me falta saber se Deus existe!

Divina Comédia

Erguendo os braços para o céu distante
E apostrofando os deuses invisĂ­veis,
Os homens clamam: — «Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triunfante,

Porque Ă© que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e sĂł gera, inestinguĂ­veis,
Dor, pecado, ilusĂŁo, lutas horrĂ­veis,
N’um turbilhĂŁo cruel e delirante…

Pois nĂŁo era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda nĂŁo existe,
Ter ficado a dormir eternamente?

Porque é que para a dor nos evocastes?»
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem: — «Homens! por que é que nos criastes?»

Transcedentalismo

Já sossega, depois de tanta luta,
Já me descansa em paz o coração.
CaĂ­ na conta, enfim, de quanto Ă© vĂŁo
O bem que ao Mundo e Ă  Sorte se disputa.

Penetrando, com fronte nĂŁo enxuta,
No sacrário do templo da Ilusão,
SĂł encontrei, com dor e confusĂŁo,
Trevas e pĂł, uma matĂ©ria bruta…

NĂŁo Ă© no vasto Mundo – por imenso
Que ele pareça Ă  nossa mocidade –
Que a alma sacia o seu desejo intenso…

Na esfera do invisĂ­vel, do intangĂ­vel,
Sobre desertos, vácuo, soledade,
Voa e paira o espĂ­rito impassĂ­vel!