A Idade
Ao princĂpio, era a doença de ser, pura e simples
exaltação das trevas de que a casa era a luz do mundo.
Ao princĂpio, estava o amor oculto no secreto fio
da memĂłria do mundo. Ao princĂpio, era o insondáveldesconhecido, aberto nas mĂŁos maternais, sortilĂ©gio
do mundo. Ao princĂpio, vinha o silĂŞncio como ponto
de encontro do nada do mundo. Ao princĂpio, chegava
a dor da pedra opressa nos corações, sublime prodĂgiodo mundo. Ao princĂpio, revelava-se o inominável,
o imĂłvel, o informe, a intimidade temida do mundo.
Ao princĂpio, clamava-se a concĂłrdia e a piedade,afirmação absoluta da constância do mundo.
Ao princĂpio, era o calor e a paz. Depois, a casa
abriu-se à terra fértil, a madre terra, a medonha terra.
Sonetos sobre Pontos
8 resultadosO Louro Chá no Bule Fumegando
O louro chá no bule fumegando
De Mandarins e Brâmanes cercado;
Brilhante açúcar em torrões cortado;
O leite na caneca branquejando.Vermelhas brasas, alvo pĂŁo tostado;
Ruiva manteiga em prato bem lavado;
O gado feminino rebanhado,
E o pisco Ganimedes apalpando;A ponto a mesa está de enxaropar-nos.
SĂł falta que tu queiras, meu Sarmento,
Com teus discretos ditos alegrar-nos.Se vens, ou caia chuva, ou brame o vento,
NĂŁo pode a longa noite enfastiar-nos,
Antes tudo será contentamento.
A uma Mulher
Pra vĂłs sĂŁo estes versos, pla consoladora
Graça dos olhos onde chora e ri um sonho
Doce, pla vossa alma pura e sempre boa,
Versos do fundo desta aflição opressora.Porque, ai! o pesadelo hediondo que me assombra
Não dá tréguas e, louco, furioso, ciumento,
Multiplica-se como um cortejo de lobos
E enforca-se com o meu destino que ensanguenta!Ah! sofro horrivelmente, ao ponto de o gemido
Desse primeiro homem expulso do ParaĂso
NĂŁo passar de uma Ă©cloga Ă vista do meu!E os cuidados que vĂłs podeis ter sĂŁo apenas
Andorinhas voando à tarde pelo céu
— Querida — num belo dia de um Setembro ameno.Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Quando Voltei Encontrei Os Meus Passos
Quando voltei encontrei os meus passos
Ainda frescos sobre a Ăşmida areia.
A fugitiva hora, reevoquei-a,
– TĂŁo rediviva! nos meus olhos baços…Olhos turvos de lágrimas contidas.
– Mesquinhos passos, porque doidejastes
Assim transviados, e depois tornastes
Ao ponto das primeiras despedidas?Onde fostes sem tino, ao vento vário,
Em redor, como as aves num aviário,
AtĂ© que a asita fofa lhes faleça…Toda essa extensa pista – para quĂŞ?
Se há de vir apagar-vos a maré,
Com as do novo rasto que começa…
Aboio De Ternura Para Uma RĂŞs Desgarrada Para Astrid Cabral
Fora de tua tribo peixe fora d’água,
bordando as muitas dores no ponto de cruz,
alinhavas rebanhos reunidos na frágua
dos rios da tua infância com escamas de luz.Versos tecidos na cambraia das anáguas
de alices caboclas, yaras-cunhĂŁs do fundo,
encantadas dos peraus, afogando mágoas,
mas que sabem, sestrosas, dos botos do mundo.E os teus pés desgarrados pisaram em nuvens
de ventos sem mormaços, no azul de outras lĂnguas:
águas despidas do alfenim de nossas chuvas.Te sabias folha de relva da ravina
irmĂŁ de Whitman e do Khayam simum
prĂłxima do teu gado e rĂŞs da prĂłpria sina.
Aos Vindouros, se os Houver…
VĂłs, que trabalhais sĂł duas horas
a ver trabalhar a cibernética,
que não deixais o átomo a desoras
na gandaia, pois tendes uma Ă©tica;que do amor sabeis o ponto e a vĂrgula
e vos engalfinhais livres de medo,
sem peçários, calendários, PĂlula,
jaculatĂłrias fora, tarde ou cedo;computai, computai a nossa falha
sem perfurar demais vossa memĂłria,
que nĂłs fomos prĂ qui uma gentalha
a fazer passamanes com a histĂłria;que nĂłs fomos (fatal necessidade!)
quadrĂşmanos da vossa humanidade.
Camões IV
Um dia, junto Ă foz de brando e amigo
Rio de estranhas gentes habitado,
Pelos mares aspérrimos levado,
Salvaste o livro que viveu contigo.E esse que foi Ă s ondas arrancado,
Já livre agora do mortal perigo,
Serve de arca imortal, de eterno abrigo,
Não só a ti, mas ao teu berço amado.Assim, um homem só, naquele dia,
Naquele escasso ponto do universo,
LĂngua, histĂłria, nação, armas, poesia,Salva das frias mĂŁos do tempo adverso.
E tudo aquilo agora o desafia.
E tão sublime preço cabe em verso.
A uma AusĂŞncia
Sinto-me, sem sentir, todo abrasado
No rigoroso fogo que me alenta;
O mal, que me consome, me sustenta;
O bem, que me entretém, me dá cuidado.Ando sem me mover, falo calado;
O que mais perto vejo, se me ausenta,
E o que estou sem ver, mais me atormenta;
Alegro-me de ver-me atormentado.Choro no mesmo ponto em que me rio;
No mor risco me anima á confiança;
Do que menos se espera estou mais certo.Mas se de confiado desconfio,
É porque, entre os receios da mudança,
Ando perdido em mim como em deserto.