A MemĂłria da Leitura
NĂŁo há talvez dias da nossa infância que tenhamos tĂŁo intensamente vivido como aqueles que julgámos passar sem tĂŞ-los vivido, aqueles que passámos com um livro preferido. Tudo quanto, ao que parecia, os enchia para os outros, e que afastávamos como um obstáculo vulgar a um prazer divino: a brincadeira para a qual um amigo nos vinha buscar na passagem mais interessante, a abelha ou o raio de sol incomodativos que nos obrigavam a erguer os olhos da página ou a mudar de lugar, as provisões para o lanche que nos obrigavam a levar e que deixávamos ao nosso lado no banco, sem lhes tocar, enquanto, sobre a nossa cabeça, o sol diminuĂa de intensidade no cĂ©u azul, o jantar que motivara o regresso a casa e durante o qual sĂł pensávamos em nos levantarmos da mesa para acabar, imediatamente a seguir, o capĂtulo interrompido, tudo isto, que a leitura nos devia ter impedido de perceber como algo mais do que a falta de oportunidade, ela pelo contrário gravava em nĂłs uma recordação de tal modo doce (de tal modo mais preciosa no nosso entendimento actual do que o que lĂamos entĂŁo com amor) que, se ainda hoje nos acontece folhear esses livros de outrora,
Textos sobre Amigos de Marcel Proust
2 resultadosA Leitura Ă© a Maior das Amizades
A amizade, a amizade que diz respeito aos indivĂduos, Ă© sem dĂşvida uma coisa frĂvola, e a leitura Ă© uma amizade. Mas pelo menos Ă© uma amizade sincera, e o facto de ela se dirigir a um morto, a uma pessoa ausente, confere-lhe algo de desinteressado, de quase tocante. E alĂ©m disso uma amizade liberta de tudo quanto constitui a fealdade dos outros. Como nĂŁo passamos todos, nĂłs os vivos, de mortos que ainda nĂŁo entraram em funções, todas essas delicadezas, todos esses cumprimentos no vestĂbulo a que chamamos deferĂŞncia, gratidĂŁo, dedicação e a que misturamos tantas mentiras, sĂŁo estĂ©reis e cansativas. AlĂ©m disso, — desde as primeiras relações de simpatia, de admiração, de reconhecimento, as primeiras palavras que escrevemos, tecem Ă nossa volta os primeiros fios de uma teia de hábitos, de uma verdadeira maneira de ser, da qual já nĂŁo conseguimos desembaraçar-nos nas amizades seguintes; sem contar que durante esse tempo as palavras excessivas que pronunciámos ficam como letras de câmbio que temos que pagar, ou que pagaremos mais caro ainda toda a nossa vida com os remorsos de as termos deixado protestar. Na leitura, a amizade Ă© subitamente reduzida Ă sua primeira pureza.
Com os livros,