Textos sobre Conhecimento de Miguel Esteves Cardoso

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Textos de conhecimento de Miguel Esteves Cardoso. Leia este e outros textos de Miguel Esteves Cardoso em Poetris.

O Engraxanço e o Culambismo Português

Noto com desagrado que se tem desenvolvido muito em Portugal uma modalidade desportiva que julgara ter caído em desuso depois da revolução de Abril. Situa-se na área da ginástica corporal e envolve complexos exercícios contorcionistas em que cada jogador procura, por todos os meios ao seu alcance, correr e prostrar-se de forma a lamber o cu de um jogador mais poderoso do que ele.
Este cu pode ser o cu de um superior hierárquico, de um ministro, de um agente da polícia ou de um artista. O objectivo do jogo é identificá-los, lambê-los e recolher os respectivos prémios. Os prémios podem ser em dinheiro, em promoção profissional ou em permuta. À medida que vai lambendo os cus, vai ascendendo ou descendendo na hierarquia.
Antes do 25 de Abril esta modalidade era mais rudimentar. Era praticada por amadores, muitos em idade escolar, e conhecida prosaicamente como «engraxanço». Os chefes de repartição engraxavam os chefes de serviço, os alunos engraxavam os professores,os jornalistas engraxavam os ministros, as donas de casa engraxavam os médicos da caixa, etc… Mesmo assim, eram raros os portugueses com feitio para passar graxa. Havia poucos engraxadores. Diga-se porém, em abono da verdade, que os poucos que havia engraxavam imenso.

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Como é que se Esquece Alguém que se Ama?

Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa – como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está?
As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração.

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Os Dias Ricos

É bom ter um dia complicado se formos nós a complicá-lo, à medida que vamos andando. São os dias ricos. Nunca sabemos o que vamos fazer a seguir mas fazemos sempre qualquer coisa a seguir, para não interromper a cadeia.

Em vez de jantarmos em casa ou jantarmos fora, entramos num restaurante onde costumamos jantar e comemos apenas um petisco, um aperitivo. Os anfitriões também apreciam a mudança. É como ir cumprimentá-los.

Metemos conversa com um casal que só nos parece japonês porque queremos que seja, para lhes perguntar como preparam a massa Shirataki, que tem zero calorias. Perguntamos de onde são? Da Holanda, respondem. Os preconceitos, no sentido de pré-juízos ou pensamentos já feitos (na verdade, substitutos e obstáculos do conhecimento), são cada vez mais inúteis.

Os hábitos são diferentes. Para celebrá-los, nem é preciso esquecê-los ou trocá-los por alternativas, felizes ou desagradáveis. O melhor é interrompê-los e acrescentar-lhes desvios espontaneamente decididos que enaltecem, através da diversão, a felicidade subjacente.

Os dias ricos levam outro dia inteiro a contar. Só fazer a lista do que se fez cansa tão bem como nadar um quilómetro, devagarinho, num oceano vivo que nos consente.

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Os Amigos São Pessoas que se Preferem

Se há um lugar onde a integridade própria não é ameaçada pela falta de verdade e pela ausência de liberdade, ele é, sem dúvida, a amizade. Os amigos são pessoas que se preferem. Cada amigo é, por isso, uma rejeição de muitas outras. Querer ser «amigo de toda a gente», usar indeliberadamente as palavras amigo e amiga para descrever todos os conhecimentos indistintivamente, prezar a amizade como valor abstracto sem investir energicamente numa prática particular – tudo isto é um egoísmo guloso, escondendo a frieza e o interesse em reificações abstrusas de conceitos demasiado gerais, inevitavelmente presos a visões fraudulentas da «humanidade».

Recear a criação de inimigos é querer impedir, logo à partida, a criação de uma amizade. Uma das tragédias da nossa idade é a invasão do domínio pessoal por valores que pertencem apenas ao domínio social. Assim, a liberdade, por exemplo, passou a ser um verdadeiro constrangimento do amor, da amizade. Certas noções de autonomia acabam por destruir a base profunda de uma relação humana séria e sentida: a lealdade. Não se pode querer amar e ser amado sem prescindir daquilo que se preza ser a «liberdade». A lealdade é um constrangimento que se aceita e que se cumpre em nome de algo (de alguém) que se julga (porque se ama) mais precioso que a liberdade.

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