Textos de Miguel Esteves Cardoso

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Textos de Miguel Esteves Cardoso. Conheça este e outros autores famosos em Poetris.

O Segredo dos Dias

Quando há muito para fazer, que é sempre, o melhor é fazer como se nada houvesse para fazer e deixar tudo para o pouco tempo – que infelizmente tem de ser medido – que resta para fazê-lo.
Nos dias de maior trabalho, permita-se o maior luxo. Não depois, mas antes. Ou melhor: antes para quem sente que roubou um pecado e tem de pagá-lo e depois para quem sente que merece uma recompensa por ter trabalhado tanto.

Os seres humanos dividem-se entre os castigadores e os recompensadores. Talvez os primeiros sejam mais judeus e católicos e os segundos mais islâmicos e protestantes.
Para os castigadores o trabalho é o preço que se paga pelo prazer, pelo adiamento, pelo facto de não ter investido o tempo bastante para tentar urdir um resultado perfeito.
Para os recompensadores primeiro trabalha-se e depois celebra-se o ter trabalhado.

Só agora me ocorre, tarde na vida, que ambas as atitudes são oprimentes, tornando-nos em porquinhos-da-índia que comem conforme põem a roda que está na jaula em movimento.
É um erro equiparar o trabalho ao prazer, seja anterior ou posterior. O trabalho é sempre um sofrimento, um esforço, uma coisa que,

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Amar até Sempre

A Maria João e eu vivemos juntos, todos os dias, a não ser os poucos (mais do que quarenta) em que os hospitais nos desinstalaram, desde o primeiro dia de Janeiro do ano 2000.
Mas, mesmo que conte só a data do casamento – no dia 30 deste mês, uma sexta-feira, alcançaremos 11 anos de casamento – acho que prescindimos alegremente de qualquer crise. O meu amor por ela é cada vez maior. O amor dela por mim, de tanto ser amada, começa a ser uma possibilidade. Foram só menos de quatro mil dias – uma pequena parte das nossas vidas – mas foram quatro mil dias de amor, felicidade ou medo de não ser amado, mais a sorte de ter sido. Uma eternidade.
Assim aconselho os amantes e os apaixonados: a primeira coisa a reter, sejam quais forem as primeiras e segundas reacções das pessoas amadas, é que se está a espalhar e visitar uma sorte amorosa sobre elas. Não é uma questão de amor. É uma questão de tempo. Esperar e não reparar é fundamental. Para quem ama, amanhã, por muito improvável que seja, é melhor do que ontem. Mas hoje pode ser, quando se tem sorte,

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Em Portugal, Ter Amor às Nossas Coisas Implica Dizer Mal Delas

Em Portugal, ter amor às nossas coisas implica dizer mal delas, já que a maior parte delas não anda bem. Nem uma coisa nem outra constitui novidade. Nem dizer mal delas, nem o facto de elas não andarem bem. Será que se diz mal na esperança de que elas se ponham boas? Também não. As nossas causas são quase sempre perdidas. Porquê então?

Porque o nosso maior bem, como António Vieira contradizia, é nunca estarmos satisfeitos. Nas nossas cabeças perversas e almas amarguradas, onde se acham todas as coisas portuguesas tal e qual achamos que deviam ser, Portugal é o país mais perfeito do mundo. Já isso é uma espécie de país, melhor do que os países reais onde as pessoas estão realmente convencidas que as coisas correm muito bem. Aprendemos a viver com esse país. E alguns conseguiram mesmo viver nele.

Desdenhar o que se tem e elogiar o que têm os outros, mas sem querer trocar, é a principal característica do aristocrático feitio do povo português. Às vezes penso que dizemos tanto mal de Portugal e dos portugueses para que não sejam os estrangeiros a fazê-lo. Monopolizamos a maledicência para nos defendermos; para evitar a concorrência.

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O Engraxanço e o Culambismo Português

Noto com desagrado que se tem desenvolvido muito em Portugal uma modalidade desportiva que julgara ter caído em desuso depois da revolução de Abril. Situa-se na área da ginástica corporal e envolve complexos exercícios contorcionistas em que cada jogador procura, por todos os meios ao seu alcance, correr e prostrar-se de forma a lamber o cu de um jogador mais poderoso do que ele.
Este cu pode ser o cu de um superior hierárquico, de um ministro, de um agente da polícia ou de um artista. O objectivo do jogo é identificá-los, lambê-los e recolher os respectivos prémios. Os prémios podem ser em dinheiro, em promoção profissional ou em permuta. À medida que vai lambendo os cus, vai ascendendo ou descendendo na hierarquia.
Antes do 25 de Abril esta modalidade era mais rudimentar. Era praticada por amadores, muitos em idade escolar, e conhecida prosaicamente como «engraxanço». Os chefes de repartição engraxavam os chefes de serviço, os alunos engraxavam os professores,os jornalistas engraxavam os ministros, as donas de casa engraxavam os médicos da caixa, etc… Mesmo assim, eram raros os portugueses com feitio para passar graxa. Havia poucos engraxadores. Diga-se porém, em abono da verdade, que os poucos que havia engraxavam imenso.

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Casar por Amor

Quando eu pensava que não podia ser mais feliz, manhã após manhã era mais, mas só um bocadinho mais do que o máximo humanamente possível; pensava eu ser absolutamente impossível que eu fosse, de repente, muito mais feliz, do que a própria felicidade até. Mas, de repente, fui. Muito mais. Casei com o meu amor e o meu amor tornou-se a minha mulher, minha em tudo, para tudo, para sempre. E eu, finalmente, consegui divorciar-me de mim e deixar de ser tão triste e aborrecidamente meu, trocando-me, no melhor negócio do século, por ela. Ela ficou minha. Eu fiquei dela. É ou não é estranho e lindo e bem pensado por Deus Nosso Senhor que ambos pensemos que nos livrámos de boa e ficámos a ganhar? É.

É sim. A minha mulher é mais minha do que eu alguma vez fui meu — e eu antes não podia ter sido mais para mim, felizmente. Por ter tudo agora para lhe dar. Que alívio. Nunca mais me quero ver na vida.
A não ser aos olhos dela, onde sou muito bem visto — talvez o maior homem que já viveu, logo a seguir ao pai dela, claro. É um milagre como melhorei tanto.

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Como é que se Esquece Alguém que se Ama?

Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa – como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está?
As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração.

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O Meu Amor

[Citações da entrevista do jornal Público a Miguel Esteves Cardoso (MEC) e Maria João Pinheiro (MJ), no dia 21 de Abril de 2013]

MEC – Ela é sempre maravilhosa. Vivia muito desconfiado nos, sei lá, nos primeiros meses e anos. Desconfiava de que ela tivesse uma Maria João verdadeira que não fosse assim mágica. Que fosse prática e muito diferente. Que houvesse – há sempre – uma pessoa escondida dentro dela. Mas não. Não há.
(…)
MJ – O Miguel é uma pessoa. Uma pessoa maravilhosa. Um tesouro.
(…)
MJ – Foi conhecer a pessoa mais generosa, perfeita, bondosa. A alma mais pura.
MEC – Devíamos dar mais entrevistas. Eu nunca ouço isto. Estou inchado. Se achavas isso antes, por que é que não disseste?
(…)
MEC – Sim. E fiquei como nunca fiquei antes. Fiquei assim toinggg. Parecia extremamente feliz. E eu: «Ah!!» E luminosa. Risonha. Como se fosse um prémio. Sabe?, um prémio. «Aqui está a tua sorte.» Senti uma ausência de dúvida. Eh pá. Só queria que fosse minha.
(…)
MEC – É a mulher mais bonita que alguma vez vi. Era linda de morrer e podia ser uma víbora.

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Como Provar a Vida

Com a idade, como castigo dos excessos da juventude mas também como consolação, começa-se a provar as coisas que dantes se consumiam sem pensar. Até quase morrer de uma hepatite alcóolica eu bebia «whiskey» como se fosse água: o «uisce beatha» gaélico; a água da vida. Agora, com o fígado restaurado por anos de abstinência, apenas provo.
Suspeito que seja assim com todos os prazeres – até o de acordar bem disposto ou passar um dia sem dores ou respirar como se quer ou não precisar de mais ninguém para funcionar. Parecem prazeres pequenos quando ainda temos prazeres maiores com os quais podemos compará-los. Mas tornam-se prazeres enormes quando são os únicos de que somos capazes.
Sei que a última felicidade de todos nós será repararmos no último momento em que conseguimos provar a vida que vivemos e achá-la – não tanto apesar como por causa de tudo – boa.

Amo-te, Portugal

Portugal,

Estou há que séculos para te escrever. A primeira vez que dei por ti foi quando dei pela tua falta. Tinha 19 anos e estava na Inglaterra. De repente, deixei de me sentir um homem do mundo e percebi, com tristeza, que era apenas mais um dos teus desesperados pretendentes.

Apaixonaste-me sem que eu desse por isso. Deve ter sido durante os meus primeiros 18 anos de vida, quando estava em Portugal e só queria sair de ti. Insinuaste-te. Não fui eu que te escolhi. Quando descobri que te amava, já era tarde de mais.

Eu não queria ficar preso a ti; queria correr mundo. Passei a querer correr para ti – e foi para ti que corri, mal pude.

Teria preferido chegar à conclusão que te amava por uma lenta acumulação de razões, emoções e vantagens. Mas foi ao contrário. Apaixonei-me de um dia para o outro, sem qualquer espécie de aviso, e desde esse dia, que remédio, lá fui acumulando, lentamente, as razões por que te amo, retirando-as uma a uma dentre todas as outras razões, para não te amar, ou não querer saber de ti.

Custou-me justificar o meu amor por ti.

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A Felicidade é uma Interrupção de Futilidade

É nas decisões fúteis, das quais nem a vida nem o estado de espírito depende, que reside a felicidade.
São estes os dias felizes, que Beckett invoca e amaldiçoa, por terem passado, na peça que tem o mesmo nome. Somos sobressaltados por ninharias, que conseguem fazer-se passar por importantes, como escolher entre uma camisa do verde do mar ou do azul do céu.
As decisões fúteis, quando a cabeça é desocupada daquilo que a preocupa, para se ocupar de uma ninharia, como decidir entre o ruivo ou o rascasso ou entre a pêra -pérola e a carapinheira, são o indício seguro da felicidade. Se a escolha primária é entre continuar a viver e deixar de viver e as escolhas secundárias são afluentes da primeira, devemos dar graças.
São uma sorte temporária e alegre a oportunidade e a ocupação mental que nos permitem pensar mais naquilo que nos interessa, sem interessar, do que naquilo que nos deveria interessar, caso estivéssemos tão aflitos que não conseguíssemos pensar noutra coisa senão sobreviver.
Quanto mais tempo perdermos nas escolhas e nas questões de que não dependem as nossas vidas ou as nossas almas – naquelas que não interessam, a bem ver,

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A Promiscuidade Tira a Vontade

O que é a experiência? Nada. É o número dos donos que se teve. Cada amante é uma coronhada. São mais mil no conta-quilómetros. A experiência é uma coisa que amarga e atrapalha. Não é um motivo de orgulho. É uma coisa que se desculpa. A experiência é um erro repetido e re-repetido até à exaustão. Se é difícil amar um enganador, mais difícil ainda é amar um enganado.
Desengane-se de vez a rapaziada. Nenhuma mulher gosta de um homem «experiente». O número de amantes anteriores é uma coisa que faz um bocadinho de nojo e um bocadinho de ciúme. O pudor que se exige às mulheres não é um conceito ultrapassado — é uma excelente ideia. Só que também se devia aplicar aos homens. O pudor valoriza. 0 sexo é uma coisa trivial. É por isso que temos de torná-lo especial. Ir para a cama com toda a gente é pouco higiénico e dispersa as energias. Os seres castos, que se reprimem e se guardam, tornam-se tigres quando se libertam. E só se libertam quando vale a pena. A castidade é que é «sexy». Nos homens como nas mulheres. A promiscuidade tira a vontade.
Uma mulher gosta de conquistar não o homem que já todas conquistaram,

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No Amor Somos Todos Meninos

No amor, somos todos meninos. Meninas, pequenos, pequeninos. Sentimo-nos coisas poucas perante a glória descarada de quem amamos. Quem ama não passa de um recém-nascido, que recém-nasce todos os dias.
Hoje não é diferente. Hoje é o dia, no ano de 2000, em que tive a sorte de me casar com a Maria João, cega, linda e enganada nesse momento como até agora, graças a um Deus que privilegia os que não merecem.
Os casamentos estão para os números e para a sorte como as rifas e as lotarias. Havendo amor, passa-se a semana a pensar que se vai ganhar e depois há um dia em que se perde – quando há discussões – seguido de mais uma semana com uma nova esperança. O amor está lá sempre, quer se ganhe ou se perca. O amor corresponde ao jogo em si. Há jogos sucessivos com resultados diferentes, mas o jogo é sempre o mesmo. Aos jogadores apenas se pede o impossível, facilmente concedido: acreditar que podem ganhar. Estamos casados há 11 anos. Passaram num instante. Pareceram mais do que 11 dias, mas menos, muito menos do que 11 meses.
Dizem que os números não querem dizer nada.

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A Grande Diferença da Vida é o Entusiasmo

A grande diferença da vida é o entusiasmo. É a força do vento. O entusiasmo é o nome feio que chamam às pessoas que acham graça a tudo o que existe na vida.

A vida é a única volta que damos. Todos os nossos projectos – de sermos melhores ou mais egoístas, mais corajosos ou comedidos – vão contra o facto de não termos tempo para corresponder às nossas expectativas.

Somos como somos. Mais vale dizermos como somos, com as palavras que temos, do que morrermos à espera de nos exprimirmos mais bem. Não há nenhuma pessoa viva que possa viver mais do que nós. Existem apenas aquelas pessoas práticas e abusadoras que aproveitam as vidas para fazer avançar tudo o que esperam da vida.

A igualdade não é uma conquista: é um facto. Exprimirmo-nos é mais justo quanto menos jeito tivermos para isso. Falar em público não é um desafio: é uma prova de proximidade.

O entusiasmo é uma vontade de perder tempo. Nada se aprende sem se querer – desejar avidamente – perder tempo. O entusiasmo é uma coisa dos ventos e os ventos vêm de onde quiserem, quando menos se esperam.

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Um Segredo de um Casamento Feliz

Desde que a Maria João e eu fizemos dez anos de casados que estou para escrever sobre o casamento. Depois caí na asneira de ler uns livros profissionais sobre o casamento e percebi que eu não percebo nada sobre o casamento.

Confesso que a minha ambição era a mais louca de todas: revelar os segredos de um casamento feliz. Tendo descoberto que são desaconselháveis os conselhos que ia dar, sou forçado a avisar que, quase de certeza, só funcionam no nosso casamento.

Mas vou dá-los à mesma, porque nunca se sabe e porque todos nós somos muito mais parecidos do que gostamos de pensar.

O casamento feliz não é nem um contrato nem uma relação. Relações temos nós com toda a gente. É uma criação. É criado por duas pessoas que se amam.

O nosso casamento é um filho. É um filho inteiramente dependente de nós. Se nós nos separarmos, ele morre. Mas não deixa de ser uma terceira entidade.

Quando esse filho é amado por ambos os casados – que cuidam dele como se cuida de um filho que vai crescendo -, o casamento é feliz. Não basta que os casados se amem um ao outro.

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Os Amigos Nunca São para as Ocasiões

Os amigos nunca são para as ocasiões. São para sempre. A ideia utilitária da amizade, como entreajuda, pronto-socorro mútuo, troca de favores, depósito de confiança, sociedade de desabafos, mete nojo. A amizade é puro prazer. Não se pode contaminar com favores e ajudas, leia-se dívidas. Pede-se, dá-se, recebe-se, esquece-se e não se fala mais nisso.

A decadência da amizade entre nós deve-se à instrumentalização que tem vindo a sofrer. Transformou-se numa espécie de maçonaria, uma central de cunhas, palavrinhas, cumplicidades e compadrios. É por isso que as amizades se fazem e desfazem como se fossem laços políticos ou comerciais. Se alguém «falta» ou «não corresponde», se não cumpre as obrigações contratuais, é logo condenado como «mau» amigo e sumariamente proscrito. Está tudo doido. Só uma miséria destas obriga a dizer o óbvio: os amigos são as pessoas de que nós gostamos e com quem estamos de vez em quando. Podemos nem sequer darmo-nos muito, ou bem, com elas. Ou gostar mais delas do que elas de nós. Não interessa. A amizade é um gosto egoísta, ou inevitabilidade, o caminho de um coração em roda-livre.

Os amigos têm de ser inúteis. Isto é, bastarem só por existir e,

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A Tristeza dos Portugueses

Porque é que os portugueses são tristes? Porque estão perto da verdade. Quem tiver lido alguns livros, deixados por pessoas inteligentes desde o princípio da escrita, sabe que a vida é sempre triste. O homem vive muito sujeito. Está sujeito ao seu tempo, à sua condição e ao seu meio de uma maneira tal que quase nada fica para ele poder fazer como quer. Para se afirmar, como agora se diz, tão mal.
Sobre nós mandam tanto a saúde e o dinheiro que temos, o sítio onde nascemos, o sangue que herdámos, os hábitos que aprendemos, a raça, a idade que temos, o feitio, a disposição, a cara e o corpo com que nascemos, as verdades que achamos; mandam tanto em nós estas coisas que nos dão que ficamos com pouco mais do que a vontade. A vontade e um coração acordado e estúpido, que pede como se tudo pudéssemos. Um coração cego e estúpido, que não vê que não podemos quase nada.
Aí está a razão da nossa tristeza permanente. Cada homem tem o corpo de um homem e o coração de um deus. E na diferença entre aquilo que sentimos e aquilo que acontece, entre o que pede o coração e não pode a vida,

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As Lágrimas e o Amor

As lágrimas das raparigas refrescam-me. Levantam-me o moral. Às vezes lambo-as dos cantos dos olhos. São mini-margaridas, sem álcool, inteiramente naturais. Dizer «Não chores» funciona sempre, porque só mencionar o verbo «chorar» emociona-as e liberta-as, dando-lhe a carta branca para chorar ainda mais. Só intervenho com piadas e palavras de esperança e de amor quando elas vão longe demais e começam, por exemplo, a pingar do nariz.

As raparigas, depois de chorar, ficam com vontade de fazer amor. É como se tivessem apanhado uma carga de chuva. Ficam todas molhadas. Nós somos a toalha que está mais à mão. O turco maluco com que se embrulham e enxutam. É horrível, não é? Mas só um santo não se aproveitaria.

E as raparigas que choram depois de se virem? Estarão assim tão arrependidas? Comovidas? Simplesmente agradecidas? Gostaria de pensar que sim. As três coisas, pelo menos. Elas próprias não sabem. Riem-se logo de seguida. As piores são as que se riem logo ao princípio. Mas as piores também são muito queridas.

A Devida Educação

Das coisas que mais custa ver é uma pessoa inteligente e criativa, quando nos está a contar uma opinião ou um acontecimento, ser diminuída pela falta de vocabulário – ou de outra coisa facilmente aprendida pela educação.
A distribuição humana de inteligência, graça, sensibilidade, sentido de humor, originalidade de pensamento e capacidade de expressão é independente da educação ou do grau de instrução. Em Portugal e, ainda mais, no mundo, onde as oportunidades de educação são muito mais desiguais, logo injustamente, distribuídas, é não só uma tragédia como um roubo.
Rouba-se mais aos que não falam nem escrevem com os meios técnicos de que precisam. Mas também são roubados aqueles, adequadamente educados, que não podem ouvir ou ler os milhões de pessoas que só não conseguem dizer plenamente o que querem, porque não têm as ferramentas que têm as pessoas mais novas, com mais sorte.
Mete nojo a ideia de a educação ser uma coisa que se dá. Que o Estado ou o patrão oferece. Não é assim. A educação, de Platão para a frente, é mais uma coisa que se tira. Não educar é negativamente positivo: é como vendar os olhos ou cortar a língua.
O meu pai,

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Os Dias Zangados São Dias de Amor

Raios partam os dias zangados. Nada há que se possa fazer para fugir deles. Esperam por nós, como credores ajudados por juros injustificáveis, para nos cortarem a fatia do nosso coração que lhes cabe.
Não são como os dias tristes, que não conseguem habituar-se a uma realidade qualquer, que se revelou, sem querer, desiludindo-nos de uma ilusão que nós próprios inventámos, para mais facilmente podermos acreditar, falsamente, nela. Mas assemelham-se para mais bem nos poderem magoar. Depois. Quase ao mesmo tempo. Bem.
Quem não tem um dia zangado, em que ninguém ou nada corresponde ao que esperávamos? A felicidade é a excepção e o engano. Resulta mais de um esquecimento do que de uma lembrança.
Pouco há de certo neste mundo. São muitos os pobres, mas não são poucos os ricos. As pessoas do sexo masculino não se entendem nem com as pessoas do sexo masculino, nem com as do sexo feminino. As pessoas, sejam de que sexo e sexualidade forem, compreendem-se mal. Dão-se mal, por muito bem que se dêem. As mais apaixonadas umas pelas outras são as que menos bem aceitam as diferenças, as incompreensões, os dias zangados e as noites zangadas que apenas servem para nos relembrar que todos nós nascemos e morremos sozinhos.

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Os Dias Ricos

É bom ter um dia complicado se formos nós a complicá-lo, à medida que vamos andando. São os dias ricos. Nunca sabemos o que vamos fazer a seguir mas fazemos sempre qualquer coisa a seguir, para não interromper a cadeia.

Em vez de jantarmos em casa ou jantarmos fora, entramos num restaurante onde costumamos jantar e comemos apenas um petisco, um aperitivo. Os anfitriões também apreciam a mudança. É como ir cumprimentá-los.

Metemos conversa com um casal que só nos parece japonês porque queremos que seja, para lhes perguntar como preparam a massa Shirataki, que tem zero calorias. Perguntamos de onde são? Da Holanda, respondem. Os preconceitos, no sentido de pré-juízos ou pensamentos já feitos (na verdade, substitutos e obstáculos do conhecimento), são cada vez mais inúteis.

Os hábitos são diferentes. Para celebrá-los, nem é preciso esquecê-los ou trocá-los por alternativas, felizes ou desagradáveis. O melhor é interrompê-los e acrescentar-lhes desvios espontaneamente decididos que enaltecem, através da diversão, a felicidade subjacente.

Os dias ricos levam outro dia inteiro a contar. Só fazer a lista do que se fez cansa tão bem como nadar um quilómetro, devagarinho, num oceano vivo que nos consente.

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