Ser Amigo

O coração de um amigo é uma coisa que sempre quer. Ser amigo é estar ao lado de quem não tem razão, contra qualquer inimigo que tenha, e apareça, dizendo com toda a justiça que o amigo não a tem. Não é suspender a razão – é usá-la friamente, aplicá-la, estar sempre consciente dela. E, contudo, não dizê-la, não mostrá-la, ficar sempre acima dela. Ser amigo é ter razão e não querer saber dela. Ser amigo é pensar duas vezes quando a última vez pertence ao que repensa o coração.

O amigo discordava dele. Dizia: Queres tu dizer que para se ser um bom amigo é preciso, às vezes, ser-se muito má pessoa? Sim, respondia ele, era isso que ele queria dizer. Porque ser amigo tem de ser uma coisa que custa. Às vezes é um trabalho, muitas horas, muitas dores; um trabalho que é o contrário do que seria natural, e do que apetece. Ser má pessoa para se ser um bom amigo (ou um bom português, ou um bom professor), é fazer fé que um outro fim faz valer o desconforto, faz valer o arrependimento, acaba por se abater sobre a vergonha. E sofrer bastante para que o outro nada sofra, e com isso deixar, também, de sofrer.

O amigo via a amizade como uma espécie de liberdade, uma licença de sinceridade, uma aceitação de defeitos. Ele dizia que não. A sinceridade, para ele, era coisa que se guardava para os inimigos. A liberdade de falar era aquilo que acontecia só quando desaparecesse o cuidado de não magoar. A sinceridade e a liberdade eram disposições gerais, e a amizade uma condição particular, mais indefesa e rara, e por isso mesmo precisada de uma protecção particular.

Os defeitos do amigo não eram, para ele, coisas que simplesmente se aceitassem. Só aceita quem os vê — e só os vê quem olha para eles. Para ele, sendo assim, não se devia sequer olhar. Os defeitos do amigo eram como as qualidades dos inimigos: coisas que se iam levando em linha de conta, só quando o caso de outro modo não se pudesse remediar. Não eram coisas que contassem — nunca eram coisas para contar.

Um amigo não é sobretudo uma pessoa em quem acreditar. É alguém que se acredita amar, e que se ama, e é só nesse sentido que faz sentido acreditar.