Na maioria dos casos o estado visionário abate o homem, e o embrutece.
Passagens sobre Casos
603 resultadosA ideia de uma obrigação social qualquer […] só essa ideia me estorva os pensamentos de um dia, e às vezes é desde a mesma véspera que me preocupo, e durmo mal, e o caso real, quando se dá, é absolutamente insignificante, não justifica nada; e o caso repete-se e eu não aprendo a aprender.
A Herança dos Empresários
Hoje em dia o sector opulento, que é quase unicamente integrado pelos empresários, só ele tem a posição de homens livres. Aos artistas e aos pensadores resta, na maioria dos casos, o recurso a serem integrados no funcionalismo público para salvaguardarem uma relativa decência económica. O empresário não está preparado para se pronunciar como director intelectual da sociedade; a sua filosofia de vida é incoerente e, muitas vezes, suspeita. Deixará uma herança datada, mas não uma obra confidencial para as futuras gerações que irão propagá-la e, com tal, merecer no mundo o seu êxito moral face aos outros povos.
Confissão
Trinta e nove anos. Meia vida passada, se isto se for aguentando, tomba daqui, tomba dali. E tudo por fazer! Comecei tarde, sem nenhuma preparação, e com defeitos horríveis, que tenho ido limando pouco a pouco, mas que resistem como fortalezas. Nasci afirmativo demais, puritano demais, uno demais, apesar duma timidez confrangedora, duma aceitação natural da volúpia e duma dispersão aflitiva a cada instante. Tenho medo dum polícia e sou capaz de enfrentar um exército; passo a vida a praticar virtudes que proíbo terminantemente aos outros; escrevo um poema, a dar uma consulta. De maneira que nunca consegui encontrar aquele equilíbrio criador onde julgo existir o pomar das grandes obras. Debato-me entre forças contraditórias, e ao cabo de cada livro sinto-me insatisfeito e culpado como um pecador que não cumpriu bem a sua penitência. Não tenho ambições fora da arte, e, dentro dela, só desejo conquistar a glória de a ter servido humilde e totalmente; mas não consegui ainda dar-lhe tudo, jogar a vida e a morte por ela. Para isso era preciso calcar aos pés o homem civil que sou, e não posso. Necessito de ter as minhas contas em dia como qualquer mortal honrado, e afligem-me os assuntos do mundo como casos pessoais.
A Mulher Virgem e o Amor
A mulher virgem, em geral, não ama o homem com quem casa, embora frequentemente de tal se persuada: gosta dele, e esse gostar, que é uma amizade, provocada em geral pelo amor do homem por ela, somando-se ao instinto sexual insatisfeito, ou seja à atracção sexual abstracta, forma um composto semi-emotivo que dá a ilusão do amor, (…) as suas emoções — aquela parte da sexualidade que não é só sexual — ficam insatisfeitas. Nuns casos o instinto maternal, exercendo-se no aparecimento dos filhos, ou satisfaz essas emoções ou as esbate e acalma; noutros casos, a vida imaginativa consegue, em maior ou menor grau, satisfazê-las. Há casos, porém, em que ficam insatisfeitas e então só o fundo moral seguro e a […] moral forte, ou o senso […] e medroso da respeitabilidade social, podem — quando podem, e isso depende muito do temperamento que está por trás d’essas emoções — resistir ao aparecimento, quando e se ele se der, do homem em quem essas emoções se possam concentrar. Em todo o caso, e para bem moral dos resultados, o melhor é o homem não aparecer.
Só o maior dos sensos morais e da honestidade do dever pode evitar um desastre.
Uma Direcção, e Não Soluções
A diferença entre solução e direcção é esta: a solução é sempre um remédio passageiro para disfarçar a desgraça. Ao passo que a direcção é a própria dignidade posta nas mãos do desgraçado para que deixe de o ser, e a direcção única é a garantia perpétua dessa dignidade. E foi o que fez Goethe: Descobriu a direcção única. Artista, na verdadeira acepção da palavra; Artista é aquele que precede a própria ciência. Por isso Goethe afastou-se de quantas realidades irrealizáveis onde costumam habitar instaladas as gentes. E impassível, desde cima, assistiu ao desenrolar da tragédia. E viu o mundo inteiro por cima de todas as cabeças, e viu a Europa toda e com cada um dos seus pedaços, e viu cada indivíduo da Humanidade como um pequenino astro tonto que nem sabe sequer ir na parábola da sua própria trajectória, e viu que de todos os seres deste mundo o único que errava o seu fim era o Homem, o dono da Terra! E viu que era na Humanidade que estavam os únicos seres deste mundo que não cumpriam com o seu próprio destino, e finalmente viu! Viu com os seus próprios olhos o que ninguém tinha visto antes dele.
Lidar com a Ansiedade
A ansiedade tanto pode ser uma sensação de vazio que antecede momentos de real perigo, como momentos imaginários, e são esses que nos interessam neste contexto do livro. A maior parte da ansiedade que sentes é devida a uma mente obstruída por problemas, incapaz de te obedecer e com uma capacidade tremenda de inventar cenários sombrios, criar situações desconfortáveis e de transformar a potencial calmaria da tua vida numa «estória» verdadeiramente soturna. Na verdade, tudo isto não passa de pura manipulação, caso contrário como é que seria possível faltar-te o ar, entrares em pânico ou sentires um aperto no peito relativamente a nada que ainda não aconteceu e que é impossível de prever? Só sentes tudo isto e muito mais porque nunca te esforçaste por disciplinar a mente e ela, como dominadora que é, exerce toda a sua criatividade no sentido de te aprisionar, retirando-te a autoestima e confiança. Viver refém da mente dá precisamente nisto, numa agonia sem fim onde o passado bloqueia, o presente inibe e o futuro assusta. É isto que queres? Calculo que não, mas o que é tens feito para mudar essa sensação de prisioneiro? A mente só deixa de mentir quando tu lhe ordenares a tua verdade e não existe verdade acerca do futuro,
A Arte da Linguagem
Quando se está em condições de julgar por qual discurso determinado homem pode ser persuadido e quando se pode, ao ver um indivíduo, penetrá-lo e dizer a si mesmo: Eis o homem, eis o carácter que me ensinaram outrora; está aqui diante de mim, e é necessário aplicar-lhe discursos de tal espécie para persuadi-lo de tal coisa; quando se dominam todos esses meios, quando se sabe, ademais, discernir as ocasiões para falar ou para calar, para ser conciso, comovente, veemente, e se é o caso ou não de recorrer a determinada espécie de discurso aprendido na escola, então ter-se-á alcançado a perfeição da arte; não antes.
Sempre a Razão vencida foi de Amor
Sempre a Razão vencida foi de Amor;
Mas, porque assim o pedia o coração,
Quis Amor ser vencido da Razão.
Ora que caso pode haver maior!Novo modo de morte e nova dor!
Estranheza de grande admiração,
Que perde suas forças a afeição,
Por que não perca a pena o seu rigor.Pois nunca houve fraqueza no querer,
Mas antes muito mais se esforça assim
Um contrário com outro por vencer.Mas a Razão, que a luta vence, enfim,
Não creio que é Razão; mas há-de ser
Inclinação que eu tenho contra mim.
É à glória que aspiras? Nesse caso considera esta lição: renúncia a tempo e espontaneamente à honra.
Ser Sensível
Não se é obrigado a fazer do homem um filósofo, em lugar de fazer dele um homem; os seus deveres para com outrem não lhe são ditados unicamente pelas tardias lições da sabedoria; e, enquanto não resistir ao impulso interior da comiseração, jamais fará mal a outro homem, nem mesmo a nenhum ser sensível, excepto no caso legítimo em que, achando-se a conservação interessada, é obrigado a dar preferência a si mesmo. Por esse meio, terminam também as antigas disputas sobre a participação dos animais na lei natural; porque é claro que, desprovidos de luz e de liberdade, não podem reconhecer essa lei; mas, unidos de algum modo à nossa natureza pela sensibilidade de que são dotados, julgar-se-á que devem também participar do direito natural e que o homem está obrigado, para com eles a certa espécie de deveres. Parece, com efeito, que, se sou obrigado a não fazer nenhum mal ao meu semelhante, é menos porque ele é um ser racional do que porque é um ser sensível, qualidade que, sendo comum ao animal e ao homem, deve ao menos dar a um o direito de não ser maltratado inutilmente pelo outro.
Às Vezes Entre a Tormenta
Às vezes entre a tormenta,
quando já umedeceu,
raia uma nesga no céu,
com que a alma se alimenta.E às vezes entre o torpor
que não é tormenta da alma,
raia uma espécie de calma
que não conhece o langor.E, quer num quer noutro caso,
como o mal feito está feito,
restam os versos que deito,
vinho no copo do acaso.Porque verdadeiramente
sentir é tão complicado
que só andando enganado
é que se crê que se sente.Sofremos? Os versos pecam.
Mentimos? Os versos falham.
E tudo é chuvas que orvalham
folhas caídas que secam.
O meu leitor não é o que me lê. É o que me relê (caso exista). Um autor lido unicamente uma vez não tem leitores, por mais retumbante que seja o seu sucesso.
Quem Vos Levou De Mim, Saudoso Estado
Quem vos levou de mim, saudoso estado,
que tanta sem-razão comigo usastes?
Quem foi, por quem tão presto me negastes,
esquecido de todo o bem passado?Trocastes-me um descanso em um cuidado
tão duro, tão cruel, qual m’ordenastes;
a fé, que tínheis dado, me negastes,
quando mais nela estava confiado.Vivia sem receio deste mal;
Fortuna, que tem tudo a sua mercê,
amor com desamor me revolveu.Bem sei que neste caso nada val,
que quem naceu chorando, justo é
que pague com chorar o que perdeu.
O Meu Cachimbo
Ó meu cachimbo! Amo-te immenso!
Tu, meu thuribudo sagrado!
Com que, bom Abbade, incenso
A Abbadia do meu passado.Fumo? E occorre-me á lembrança
Todo esse tempo que lá vae,
Quando fumava, ainda criança,
Ás escondidas do meu Pae.Vejo passar a minha vida,
Como n’um grande cosmorama:
Homem feito, pallida Ermida,
Infante, pela mão da ama…Por alta noite, ás horas mortas,
Quando não se ouve pio, ou voz,
Fecho os meus livros, fecho as portas
Para fallar comtigo a sós.E a noite perde-se em cavaco,
Na Torre d’Anto, aonde eu moro!
Alli, mettido no buraco,
Fumo e, a fumar, ás vezes… choro.Chorando (penso e não o digo)
Os olhos fitos neste chão,
Que tu és leal, és meu amigo…
Os meus amigos onde estão?Não sei. Tral-os-á o «nevoeiro»…
Os trez, os intimos, Aquelles,
Estão na Morte, no extrangeiro…
Dos mais não sei, perdi-me d’elles.Morreram-me uns. Por elles peço
A Deus, quando está de maré:
E, ás noites,
Homens Exageradamente Subtis
Os homens exageradamente subtis raro são grandes homens, e as suas pesquisas são, na maior parte dos casos, tão inúteis como requintadas. Afastam-se cada vez mais da vida prática, de que se deveriam aproximar. Assim como os mestres de dança ou de esgrima não começam por ensinar a anatomia dos braços e das pernas, também uma filosofia sã e utilizável deve partir de muito mais alto do que todas as suas especulações. «Deve pôr-se o pé assim para se não cair» e «é necessário acreditar nisto pois seria absurdo não acreditar», constituem bases muito boas.
As pessoas que quiserem ir mais longe podem fazê-lo, mas sem pensarem que fazem algo de grande, porque se tudo resultar, nada mais encontrarão, no fim de contas, do que aquilo que o homem razoável sabia há muito.
O homem que faz uma nova demonstração do décimo segundo teorema de Euclides merece ser chamado engenhoso, mas nem por isso contribuirá mais para o alargamento das fronteiras da ciência do que se não tivesse feito tal invenção. Mas nunca, por certo, chegareis a convencer o céptico, porque que argumento deste mundo será capaz de convencer um homem capaz de acreditar em absurdidades? E alguém que quer ser convencido merecerá ser refutado?
Os Pastores
Guardavam certos pastores
seus rebanhos, ao relento,
sobre os céus consoladores
pondo a vista e o pensamento.Quando viram que descia,
cheio de glória fulgente,
um anjo do céu do Oriente,
que era mais claro que o dia.Jamais os cegara assim
luz do meio-dia ou manhã.
Dir-se-ia o audaz Serafim,
que um dia venceu Satã.Cheios de assombro e terror,
rolaram na erva rasteira.
– Mas ele, com voz fagueira,
lhes diz, com suave amor:«Erguei-vos, simples, daí,
humildes peitos da aldeia!
Nasceu o vosso Rabi,
que é Cristo – na Galileia!Num berço, o filho real,
não o vereis reclinado.
Vê-lo-eis pobre e enfaixado,
sobre as palhas de um curral!Segui dos astros a esteira.
Levai pombas, ramos, palmas,
ao que traz uma joeira
das estrelas e das almas!»Foi-se o anjo: e nas neblinas,
então celestes legiões
soltam místicas canções,
sobre violas divinas.Erguem-se, enfim, os pastores
e vão caminhos dalém,
com palmas, rolas, e flores,
Quem não Ama a Solidão, não Ama a Liberdade
Nenhum caminho é mais errado para a felicidade do que a vida no grande mundo, às fartas e em festanças (high life), pois, quando tentamos transformar a nossa miserável existência numa sucessão de alegrias, gozos e prazeres, não conseguimos evitar a desilusão; muito menos o seu acompanhamento obrigatório, que são as mentiras recíprocas.
Assim como o nosso corpo está envolto em vestes, o nosso espírito está revestido de mentiras. Os nossos dizeres, as nossas acções, todo o nosso ser é mentiroso, e só por meio desse invólucro pode-se, por vezes, adivinhar a nossa verdadeira mentalidade, assim como pelas vestes se adivinha a figura do corpo.Antes de mais nada, toda a sociedade exige necessariamente uma acomodação mútua e uma temperatura; por conseguinte, quanto mais numerosa, tanto mais enfadonha será. Cada um só pode ser ele mesmo, inteiramente, apenas pelo tempo em que estiver sozinho. Quem, portanto, não ama a solidão, também não ama a liberdade: apenas quando se está só é que se está livre.
A coerção é a companheira inseparável de toda a sociedade, que ainda exige sacrifícios tão mais difíceis quanto mais significativa for a própria individualidade. Dessa forma, cada um fugirá, suportará ou amará a solidão na proporção exacta do valor da sua personalidade.
Quem não sente amor, deve aprender a adular; caso contrário, não consegue viver.
O Princípio Fundamental da Sociedade
Abster-se reciprocamente de ofensas, da violência, da exploração, adaptar a sua própria vontade à de outro: tal coisa pode, num certo sentido tosco, tornar-se bom costume entre indivíduos, se existirem condições para tal (a saber, semelhança efectiva entre as suas quantidades de força e entre as suas escalas de valores e a homogeneidade dos mesmos dentro de um só organismo). Logo que, porém, se quisesse alargar este princípio, concebendo-o até como príncipio fundamental da sociedade, revelar-se-ia imediatamente como aquilo que é: vontade de negação da vida, princípio de dissolução e de decadência. Aqui é preciso pensar-se bem profundamente e defender-se de toda a fraqueza sentimentalista: a própria vida é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição daquilo que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e pelo menos, na melhor das hipóteses, exploração, – mas para que empregar palavras a que, desde há muito, se deu uma intenção difamadora?
Também aquele organismo dentro do qual conforme acima se admitiu, os indivíduos se tratam como iguais – e tal se dá em toda a aristocracia sã -, tem de fazer, no caso de ser um organismo vivo e não moribundo, ao enfrentar outros organismos, tudo o que os indivíduos dentro dele se abstêm de fazer entre si: terá de ser a vontade de poder personificada,