Textos de Miguel Esteves Cardoso

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Textos de Miguel Esteves Cardoso. Conheça este e outros autores famosos em Poetris.

Os Dias Ricos

É bom ter um dia complicado se formos nós a complicá-lo, à medida que vamos andando. São os dias ricos. Nunca sabemos o que vamos fazer a seguir mas fazemos sempre qualquer coisa a seguir, para não interromper a cadeia.

Em vez de jantarmos em casa ou jantarmos fora, entramos num restaurante onde costumamos jantar e comemos apenas um petisco, um aperitivo. Os anfitriões também apreciam a mudança. É como ir cumprimentá-los.

Metemos conversa com um casal que só nos parece japonês porque queremos que seja, para lhes perguntar como preparam a massa Shirataki, que tem zero calorias. Perguntamos de onde são? Da Holanda, respondem. Os preconceitos, no sentido de pré-juízos ou pensamentos já feitos (na verdade, substitutos e obstáculos do conhecimento), são cada vez mais inúteis.

Os hábitos são diferentes. Para celebrá-los, nem é preciso esquecê-los ou trocá-los por alternativas, felizes ou desagradáveis. O melhor é interrompê-los e acrescentar-lhes desvios espontaneamente decididos que enaltecem, através da diversão, a felicidade subjacente.

Os dias ricos levam outro dia inteiro a contar. Só fazer a lista do que se fez cansa tão bem como nadar um quilómetro, devagarinho, num oceano vivo que nos consente.

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Os Velhos São os Verdadeiros Rebeldes

Os velhos são os verdadeiros rebeldes. Os jovens, por muiro rasgados que estejam os blusões de cabedal, querem sempre conformar-se com qualquer coisa. Querem fazer parte dum movimento. Querem fazer parte de uma revolução ou de uma comunidade. Os velhos só querem fazer partes. De preferência gagas. Os velhos não têm nada a perder. Podem dizer e fazer o que lhes apetece. É por isso que os velhos, mais do que os novos, dizem quase sempre a verdade. Nós é que podemos não querer ouvi-la. Há-de reparar-se que aquilo que os velhos dizem é que «a vida é uma chatice». Nós dizemos que eles estão senis. Mas eles é que têm razão.

Não há Dicas para Namorar e Casar

Nunca me ensinaram as coisas realmente úteis: como é que um rapaz arranja uma noiva, que tipo de anel deve comprar, se pode continuar a sair para os copos com os amigos, se é preciso pedir primeiro aos pais, se tem de usar anel também. Palavra que fui um rapaz que estudou muito e nunca me souberam ensinar isto. Ensinaram-me tudo e mais alguma coisa sobre o sexo e a reprodução, sobre o prazer e a sedução, mas quanto ao namorar e casar, nada. E agora, como é que eu faço?

Passei a pente fino as melhores livrarias de Lisboa e não encontrei uma única obra que me elucidasse. Se quisesse fazer cozinha macrobiótica, descobrir o «ponto G» da minha companheira para ajudá-la a atingir um orgasmo mais recompensador, montar um aquário, criar míscaros ou construir um tanque Sherman em casa, sim, existe toda uma vasta bibliografia. Para casar, nem um folheto. Nem um «dépliant». Nada. Nem um autocolante. Para apanhar SIDA sei exactamente o que devo fazer. Para apanhar a minha noiva não faço a mais pequena ideia.

Porque é que o Ministério da Juventude, em vez de esbanjar fortunas com iniciativas patetas (como aquela piroseira fascistóide dos Descobrimentos) e anúncios ridículos (como aqueles «Ya meu,

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Os Dias Bons

Os dias bons são os dias em que se acorda, tendo dormido oito, nove ou, melhor ainda, dez horas e, reflectindo naquela ronha de quem já não consegue dormir mais mas gosta de ficar na cama (porque a temperatura e a companhia são perfeitas), se lembra que não tem nada para fazer, senão tomar o pequeno-almoço, o almoço, o chá e o jantar. E, se quiser, entretanto, nalgum intervalo qualquer, trabalhar, tanto melhor. Mas não importa. Dias de domingos antigos: dias de prazer sem saber.
Os dias bons nunca acontecem. Acontecem, quando muito, cinco ou dez mil vezes numa vida. Três míseros anos já têm mais de mil. Domingo, daqui a uma semana, terei a sorte nunca tida de estar casado e feliz com a Maria João há 12 anos. Doze anos cheios de dias bons, impossíveis de contar.
O amor, para quem é mais novo e não sabe como fazer, não é uma técnica ou uma táctica. Não há segredo. Não há lições. Ou se ama ou não se ama. Ou se é também amado ou não se é. Esperar é o melhor conselho. Experimentar é o pior. O segredo não é ter paciência: é conseguir manter a impaciência num estado de excelsitude.

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O Amor é um Exagerador

As coisas boas, como o amor e a sabedoria, não trazem a felicidade pela simples razão que as coisas boas têm, para ser boas, de ser «boas por si mesmas». Não podem ser boas por aquilo que trazem. Pelo contrário, têm um preço. O mais das vezes, o preço do amor e da sabedoria, ambos artigos finos, artigos de luxo, coisas boas, é a infelicidade. Quando se ama, ou quando se estuda muito, fica-se sujeito às vontades e às verdades mais alheias. Nada depende quase nada de nós. E sofre-se. Irritam as pessoas que esperam que o amor traga a felicidade. É como esperar que os morangos tragam as natas. O amor não é um meio para atingir um fim — não é através do amor que se chega à felicidade. O amor é um exagerador — exagera os êxtases e as agonias, torna tudo o que não lhe diz respeito (o mundo inteiro) numa coisa pequenina. Assim como a arte tem de ser pela arte e a ciência pela ciência (seria um horror ouvir alguém dizer «Eu quero ser pintor ou biólogo para ganhar muito dinheiro e ir a muitas festas e ter duas carrinhas Volvo com galgos do Afeganistão lá dentro»),

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O que Distingue um Amigo Verdadeiro

Não se pode ter muitos amigos. Mesmo que se queira, mesmo que se conheçam pessoas de quem apetece ser amiga, não se pode ter muitos amigos. Ou melhor: nunca se pode ser bom amigo de muitas pessoas. Ou melhor: amigo. A preocupação da alma e a ocupação do espaço, o tempo que se pode passar e a atenção que se pode dar — todas estas coisas são finitas e têm de ser partilhadas. Não chegam para mais de um, dois, três, quatro, cinco amigos. É preciso saber partilhar o que temos com eles e não se pode dividir uma coisa já de si pequena (nós) por muitas pessoas.

Os amigos, como acontece com os amantes, também têm de ser escolhidos. Pode custar-nos não ter tempo nem vida para se ser amigo de alguém de quem se gosta, mas esse é um dos custos da amizade. O que é bom sai caro. A tendência automática é para ter um máximo de amigos ou mesmo ser amigo de toda a gente. Trata-se de uma espécie de promiscuidade, para não dizer a pior. Não se pode ser amigo de todas as pessoas de que se gosta. Às vezes, para se ser amigo de alguém,

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Para a Minha Mulher

Desde que a Maria João casou (oficialmente) comigo há treze anos, damos por nós a casarmo-nos um com o outro, voluntária ou involuntariamente, várias vezes por dia.
Vou contar só uma. Esta semana, quando voltávamos da praia, a Maria João estava a pentear-se e deu-me uns cabelos soltos para eu deitar pela janela do carro. Tive ciúmes que alguém pudesse apanhar os lindos cabelos dela e disse-lhe. Dei-lhes um beijinho e atirei-os ao vento. E a Maria João disse: «Agora tenho eu ciúmes que alguém apanhe o cabelo com beijinhos teus».

Casámos um com o outro nesse momento. Já tínhamos casado cinco vezes na praia. Casar é o que acontece quando duas pessoas descobrem que, por estarem a fazer ou terem feito uma coisa grande ou pequena, são as duas únicas pessoas no mundo. Todas as outras pessoas não podem fazer parte daquele prazer. Aquele prazer só é possível para duas pessoas concretas: ela e eu.

À nossa volta casavam-se muitas outras pessoas, casando-se mais por nós estarmos de fora, juntamente com todas as outras. Às vezes somos nós os espectadores. Vemos outras pessoas a casarem-se: um homem a rir-se leva uma mulher a rir-se nos braços pelo mar adentro e não a deixa cair até ela pedir.

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As Saudades Curtas

Também as versões-formiga dos maiores sentimentos têm tanto direito ao respeito como os leões e as impalas. Até por serem muito mais numerosas e frequentes, como está a multidão de insectos para com a pequena minoria dos vertebrados.
A minha formiguinha emocional são as saudades curtas que eu tenho da Maria João. Plenas não posso ter, graças a ela e a Deus, porque são poucos os momentos em que ela não está comigo. Mesmo não sendo muitas, essas faltas, por muito felizmente pequenas e provocadas pela necessidade, são suficientes para incutir em mim a dor, nem que seja por cinco minutos apenas, de estar separado dela.
Parecem estúpidas as saudades curtas. São certamente insensíveis e solipsistas, perante as saudades longas e profundas, que não têm cura nem, por serem insolúveis, têm a esperança de, um dia, deixarem de existir.
São saudades de uma hora, de um almoço perdido, de uma tarde interrompida. Parecem irracionais e ingratas, estas saudades curtas, de que sofrem as pessoas apaixonadas e felizes ou infelizes.
Mas não são. Daqui a um X número de horas, vou morrer. Daqui a um Y número de horas, vai morrer a Maria João. Morra quem morra,

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Um Dia Bem Passado

De vez em quando acontece, um dia bem passado. Um dia que é o contrário da vida, porque desde o primeiro ao último momento acordado, passa-se bem, como antigamente se dizia em Angola e cá.
Um dia bem passado não pode ser planeado. Mas tem de ser protegido. Um dia bem passado é um dia que se passa quase às escondidas. Parece mais roubado do que um beijo – e tem razão.
Um dia bem passado, como foi o último dia de Setembro para a minha mulher e para mim, tem de meter pargos, lavagantes, ostras e beijinhos.
Na Praia das Maçãs, nos boníssimos restaurantes Neptuno e Búzio, as ostras são sumptuosas. Mas não as vendem à dúzia e à meia-dúzia, comme il faut. É ao peso, a granel, como eles as compram. É uma prática que irrita. Mas com toda a delicadeza, claro. Como uma pérola, formada pela irritação de um grão de areia dentro de uma ostra. O peso de uma ostra (a concha mais a carne) nada diz sobre o peso do molusco. Há ostras gordas e suculentas escondidas por conchas minimais e esguias e há ostras minimais e esguias escondidas por conchas gordas e suculentas.

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Declaração de Amor

Quem é que tem a sorte de ter um amor dele ou dela que ama ou que tem, seja amado ou amada? Tenho eu e conheço muitas pessoas que já têm ou que vão ter. Mas, tal como todos os outros apaixonados e todas as outras apaixonadas, desconfio, com calor na alma, que ninguém tem o amor que eu tenho pela Maria João, meu amor, minha mulher, minha salvação.
O amor sai caro – medo de perdê-la, medo do tempo a passar, medo do futuro – mas paga-se sem se dar por isso. Mentira. Dá-se por isso só nos intervalos de receber, receber, receber e dar, dar, dar.
Basta uma pequena zanga para parecer que todo aquele amor desmoronou: “Onde está esse teu apregoado amor por mim (de mãos nas ancas), agora que eu preciso dele?”
Quanto maior o amor, mais frágil parece. Quanto maior o amor, mais pequeno é o gesto que parece traí-lo. Mas com que alegria nos habituamos a viver nesse regime de tal terror!
Maria João, meu amor: o barulho que faz a felicidade é ouvires-me a perder tempo a resmungar e a pedir que tudo continue exactamente como está, para sempre.

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Tenho Saudades de Ti

Os dias contigo são dias inteiros que passam num instante. Tenho saudades de ti quando acordo, antes de perceber que já estás ali ao meu lado. Tenho saudades de ti de manhã enquanto espero que desças do banho. Fico bem a ler enquanto te espero, mas leio melhor quando estás ao pé de mim, quando já não me apetece ler.

Hoje foi mais um dia contigo e, mais uma vez, dou comigo aqui à noite, separado de ti, para escrever sobre o dia que se passou. E a coisa principal que aconteceu foi ter saudades de ti outra vez.

Bem sei que sei onde estás e que eu estou aqui a cinco passos de ti. Mas a maior certeza que tenho é que, apesar disso tudo, não estou contigo nem tu estás comigo. É o que me basta para ter saudades de ti. Não preciso de mais: se mais tivesse, morreria.

É verdade que estive contigo durante uma pequena parte do dia: aquela a que as pessoas tristes e habituadas chamam vida. Mas estava tão apaixonado e tão feliz que nem dei por isso.

Pensei apenas: “Conseguimos! Conseguimos estar juntos! Nem acredito!”

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Até a Pessoa Amada Voltar

Até ela, a pessoa amada, voltar, o tempo não corre como costuma correr. Atrasa-se e detém-se. Suspende-se e atrapalha-nos. Move-se de um lado para o outro. Arrasta os lugares: aqueles onde ela está e aquele (a nossa casa) onde eu espero por ela.

Esperar é um sofrimento mas também se aprende a esperar. Olhar para um relógio é a pior coisa que se pode fazer porque esses quantificadores malévolos são contabilistas automatizados que sabem contar todos os tempos, excepto os tempos de quem ama, espera e tem medo.

Não são capazes de contar os tempos de todas as pessoas dotadas de um corpo com coração e alma. Que somos todos, quer queiramos, quer não. Quem é que quer? Ninguém. E de que nos serve? De nada. Até ela, a pessoa amada, voltar, a única coisa que podemos fazer é a que mais nos custa: esperar que ela volte. Mas quando é que ela volta? Os minutos podem não ser anos mas os quartos-de-hora são semanas inteiras.

Mesmo saber que ela, a pessoa amada, voltará é difícil. Até acreditamos que queira voltar. Mas preocupamo-nos: e se ela não puder voltar? Pensar nisso é como morrer vivo sem pensar nisso.

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Os Amigos São Pessoas que se Preferem

Se há um lugar onde a integridade própria não é ameaçada pela falta de verdade e pela ausência de liberdade, ele é, sem dúvida, a amizade. Os amigos são pessoas que se preferem. Cada amigo é, por isso, uma rejeição de muitas outras. Querer ser «amigo de toda a gente», usar indeliberadamente as palavras amigo e amiga para descrever todos os conhecimentos indistintivamente, prezar a amizade como valor abstracto sem investir energicamente numa prática particular – tudo isto é um egoísmo guloso, escondendo a frieza e o interesse em reificações abstrusas de conceitos demasiado gerais, inevitavelmente presos a visões fraudulentas da «humanidade».

Recear a criação de inimigos é querer impedir, logo à partida, a criação de uma amizade. Uma das tragédias da nossa idade é a invasão do domínio pessoal por valores que pertencem apenas ao domínio social. Assim, a liberdade, por exemplo, passou a ser um verdadeiro constrangimento do amor, da amizade. Certas noções de autonomia acabam por destruir a base profunda de uma relação humana séria e sentida: a lealdade. Não se pode querer amar e ser amado sem prescindir daquilo que se preza ser a «liberdade». A lealdade é um constrangimento que se aceita e que se cumpre em nome de algo (de alguém) que se julga (porque se ama) mais precioso que a liberdade.

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O Segredo da Boa Disposição

Deixaram-nos aqui. É mesmo assim. É a vida. Tem graça, não tem? A vida tem graça. Nós temos graça. É engraçado estarmos todos aqui. A incerteza geral da existência, aliada à certeza particular do facto de termos nascido e de irmos um dia esticar o pernil, é de morrer a rir. Entre outras coisas. Já que nos puseram aqui, indispostos, mal distribuídos, condenados à confusão e à companhia dos outros, o mínimo que podemos fazer é pormo-nos o mais bem dispostos que pudermos.
O segredo da minha boa disposição é pensar o mais possível nos outros – nos outros que amo e que me têm de aturar, nos outros de quem só conheço o sofrimento e me fazem sentir a sorte que tenho em sofrer tão poucochinho – e o menos possível em mim. Quanto mais eu me desprezo e desconheço, quanto mais eu entristeço de me entender, mais preciso que haja quem goste de mim. Ou pelo menos da minha companhia.

Fazer as Pazes

Para fazer as pazes é preciso haver uma guerra. Mas, quando não há uma guerra ou só a suspeita, ou ciúme, de haver uma ameaça, ou uma desatenção, de a paz que encanta e apaixona, se tornar num hábito, as pazes ficam feitas e celebra-se essa felicidade.
O conflito e a diferença de personalidades – a identidade pessoal de cada um e quanto estamos dispostos a sacrificarmo-nos por defendê-la – são grossamente exagerados. É a necessidade de se achar que se é diferente – nos afectos, nas necessidades – que provoca todos os mal-entendidos e a maior parte das infelicidades.
Muito ganharíamos – se perdêssemos só o que temos de perder e amargar -, se partíssemos do princípio que somos todos iguais, homens e mulheres, eu e tu, eles e nós. E que é o pouco que nos diferencia e distancia, por muito caro que nos saia, que consegue o milagre de tornarmo-nos mais atraentes uns aos outros.
As guerras imaginadas são mil vezes melhores do que as verdadeiras. A ilusão da diferença (de personalidades, sexos, sexualidades, culturas – e tudo o mais que arranjamos para chegar à ficção vaidosa que cada um é como é) passou a ser o que apreciamos ser a nossa nociva e dispensável individualidade.

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A Amizade e o Amor Segundo uma Lógica de Bazar

Desconfia-se do que é dado e pesa-se o que se recebe. A amizade e o amor parecem gerir-se, por vezes, segundo uma lógica de bazar. Já nem é considerado má-educação perguntar quanto é que uma prenda custou. Se esse preço é excessivo chega-se a dizer que não se pode aceitar. Recusar uma dádiva é como chamar interesseiro ao dador. É desconfiar que existe uma segunda intenção. De qualquer forma, só quem tem medo (ou corre o risco) de se vender pode pensar que alguém está a tentar comprá-lo. Quem dá de bom coração merece ser aceite de bom coração. A essência sentimental da dádiva é ultrajada pela frieza da avaliação.
A mania da equitatividade contamina os espíritos justos. É o caso das pessoas que, não desconfiando de uma dádiva, recusam-se a aceitar uma prenda que, pelo seu valor, não sejam capazes de retribuir. Esta atitude, apesar de ser nobre, acaba por ser igualmente destrutiva, pois supõe que existe, ou poderá vir a existir, uma expectativa de retribuição da parte de quem dá. Mas quem dá não dá para ser pago. Dá para ser recebido. Não dá como quem faz um depósito ou investimento. O valor de uma prenda não está na prenda –

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As Notícias São o Contrário da Vida

As notícias são o contrário da vida. Uma notícia é uma novidade; é uma excepção. Mas a pergunta mais difícil (provocando a resposta mais interessante) é: “São uma excepção a quê?”
A noção corrente, idiota, é que “cão morde homem” não é notícia, mas que “homem morde cão” é. Mentira. A grande maioria dos cães não morde as pessoas. E quando há uma pessoa que morde um cão não só é raro, como desinteressante.
Atrás – ou à frente – desta simplificação está a questão bastante mais importante de como se dão os cães e os homens. As mordeduras são episódios pouco representativos e facilmente explicáveis, sem explicarem nada.
Um psicopata assassina muitas pessoas. É uma notícia. Mas que nos diz dos noruegueses? Nada. Que nos diz sobre o comportamento dos europeus? Nada.
A realidade é o contrário da notícia. A notícia é histriónica e histérica, separada da normalidade, que nunca é unívoca ou definidora. Existem dois impulsos. O mais antigo é realçar a surpresa e a indignação. O mais moderno é notar as ausências e as diferenças, mas investigar e descrever as presenças circundantes, onde e entre as quais ocorrem tanto a novidade como a antiguidade.

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Não Há Amor como o Primeiro

Não há amor como o primeiro. Mais tarde, quando se deixa de crescer, há o equivalente adulto ao primeiro amor — é o primeiro casamento; mas não é igual. O primeiro amor é uma chapada, um sacudir das raízes adormecidas dos cabelos, uma voragem que nos come as entranhas e não nos explica. Electrifica-nos a capacidade de poder amar. Ardem-nos as órbitas dos olhos, do impensável calor de podermos ser amados. Atiramo-nos ao nosso primeiro amor sem pensar onde vamos cair ou de onde saltámos. Saltamos e caímos. Enchemos o peito de ar, seguramos as narinas com os dedos a fazer de mola de roupa, juramos fazer três ou quatro mortais de costas, e estatelamo-nos na água ou no chão, como patos disparados de um obus, com penas a esvoaçar por toda a parte.

Há amores melhores, mas são amores cansados, amores que já levaram na cabeça, amores que sabem dizer “Alto-e-pára-o-baile”, amores que já dão o desconto, amores que já têm medo de se magoarem, amores democráticos, que se discutem e debatem. E todos os amores dão maior prazer que o primeiro. O primeiro amor está para além das categorias normais da dor e do prazer. Não faz sentido sequer.

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O Amor Maior

O amor é preocupação. Ter o coração já previamente ocupado. Ter medo que alguma coisa de mal aconteça à pessoa amada. Sofrer mais por não poder aliviar o sofrimento da pessoa amada do que ela própria sofre.
O amor é banal. É por isso que é tão bonito. O que se quer da pessoa amada: antes que ela nos ame também, é que ela seja feliz, que seja saudável, que tudo lhe corra bem. Embora se saiba que o mundo não o permite, passa-se por cima da realidade, do raciocínio do que é possível, e quer-se, e espera-se, que Deus abra, no caso dela, uma excepção.

A paixão pode parecer mais interessante. Mas irrita-me que se compare com o amor. Como se pode comparar dois sentimentos que não têm uma única semelhança? Se o amor e a paixão coincidem, é como a cor do céu e do mar num dia de Verão — é uma alegria, mas nada nos diz acerca do que distingue o ar da água.
Dizer que o amor pode começar como paixão é uma forma falaciosa de estabelecer uma continuidade entre uma e outra, geralmente pejorativa para o amor, que é entendido como um resíduo da paixão,

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Fim-de-Semana em Casa

É sábado. É Inverno. É dia de acastelar. Saímos com sacos, «tupper-wares», rolos de notas e troco, listas.
Vamos aos mercados, às lojas, aos restaurantes. O objectivo é enchermo-nos de víveres, jornais e revistas, queijinhos frescos, nozes e avelãs, coentros e beringelas, feijoadas de chocos e caldeiradas, velharias, bolos e pilhas sobressalentes.
Só o bastante para nos acastelarmos em casa, repimpões, com tudo ao nosso alcance, até à longínqua segunda-feira. Dia em que saíremos – talvez – quando todos os forasteiros e fim-de-semaneiros tiverem voltado para casa deles.
Não temos um fosso ou sequer um ferrolho na porta – mas corremo-lo à mesma, idealmente, tropeçando de verdade nas cabeças de alhos-porros e nas ramas das beterrabas, protuberando dos sacos de plástico deitados, mortos, no chão da cozinha.
Será a mentalidade medieval do campismo ou o ideal «hippy» da auto-suficiência? Não. Constitui açambarcamento? É anti-social? Também não. É apenas o prazer do ninho. Com ameias.
Quanto pior o tempo, melhor sabe fecharmo-nos no nosso castelinho, seguros que estamos abastecidos, de tudo, para dois dias inteiros, prontos para sobrevivermos alegremente até ao fim do fim-de-semana. Cá nos acastelamos e cá nos vamos arranjando.
Noutra dimensão, graças a compras sabichonas,

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