Não se Consegue ser Exterior à Nossa Própria Indiferença
A dificuldade da existência estava precisamente neste problema concreto: por diversas vezes Walser se vira, ao longe, alegre, e também de longe observara a sua própria tristeza ou irritação. Nada de mais. Mas o que nunca conseguira era ser exterior à indiferença; ser exterior a si nos momentos, inúmeros, em que se encontrava neutro face às coisas, inerte e em estado de espera perante a possibilidade de um acto ou do seu contrário. Quanto mais intensidade existia no corpo, mais fácil era afastar-se, ser testemunha de si próprio. As dificuldades de observação privilegiada, de uma existência que lhe pertencia, surgiam assim, de um modo extremo, quando a intensidade dos sentimentos era quase nula. Se ele já lá não estava – na existência – como se poderia ainda afastar mais?
Mas o que era concretamente este lá, este outro sĂtio que por vezes parecia ser o seu centro outras vezes o seu oposto? Sobre a localização geral desse lá, Walser nĂŁo tinha dĂşvidas: era o cĂ©rebro. Era ali que tudo se passava ou que tudo o que se passava era observado. Ali fazia, e ali via-se a fazer. Como qualquer louco normal, pensou Walser, e sorriu da fĂłrmula.
Gonçalo M.
Textos sobre Corpo de Gonçalo M. Tavares
3 resultadosO Mundo Tem um Focinho
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NĂŁo penses que o mundo tem para ti um rosto,
uma fisionomia de dĂłcil empregado de mesa
ou de mulher bela;
a vida — e o mundo a que está agarrada —
tem sim um focinho. E esses beiços grossos
(que jamais incitam Ă mĂşsica)
desde que nasces, como um juiz de cara
deformada, observam e julgam os teus comportamentos.31
Em média: as pessoas aperfeiçoam mais os engenhos
mecânicos da corrupção e das traições mesquinhas
que os da hospitalidade. Os perigos
que observam um corpo sĂŁo produzidos incessantemente
em qualquer fábrica desconhecida
mas eficaz.
Há muito perigo no mundo
— terás pois (não te aborreças já) a tua bela parte.Gonçalo M.
A Vida Ă© IlegĂvel
A vida, meu caro, Ă© ilegĂvel. Acontece
e desaparece. Não há inteligência
que a descodifique: vem em linguagem-nada,
surge no corpo como surge o dia, e como
se dia e vida individual fossem materiais paralelos.
A vida nĂŁo surge em prosa
nem em poesia — e a existência não fala
inglĂŞs, apesar de tudo. A natureza dos acontecimentos
resiste às invasões matreiras da publicidade e
dos filmes. Já não é mau.Gonçalo M.