Estado e Cultura
A cultura é uma das formas de libertação do homem. Por isso, perante a política, a cultura deve sempre ter a possibilidade de funcionar como antipoder. E se é evidente que o Estado deve à cultura o apoio que deve à identidade de um povo, esse apoio deve ser equacionado de forma a defender a autonomia e a liberdade da cultura para que nunca a acção do Estado se transforme em dirigismo.
Textos sobre Possibilidades
126 resultadosO Amor não Acontece. Decide-se.
Há quem julgue que o amor é alheio à vontade humana, algo superior que elege, embala e conduz… e que quase nada se pode fazer perante tamanha força. Isso é uma mera paixão no seu sentido menos nobre. E, nesse caso, sim, o amor acontece… Ao contrário, amar é estar acima das paixões e dos apetites. Mesmo quando o amor nasce de uma espontaneidade, resulta de um claro discernimento.
O amor decorre de uma decisão. De um compromisso. Constrói-se de forma consciente. Através do heroísmo de alguém livre que decide ser o que poucos ousam. Escolhe para fim de si mesmo ser o meio para a felicidade daquele a quem ama. Sim, decide-se amar e, sim, decide-se a quem amar.
O amor autêntico é raro e extraordinário, embora o seu nome sirva para quase tudo… a maior parte das vezes designa egoísmos entrelaçados, cada vez mais comuns. São poucos os que se aventuram, os que arriscam tudo, os que se dispõem a amar mesmo quando sabem que poucos sequer perceberão o que fazem, o seu porquê e o para quê.
O amor não supõe reciprocidade. Amar é dar-se por completo e aceitar tudo… não se contabilizam ganhos e perdas,
A Necessidade de Conversar
Nos jornais, em conversas, no escritório, a impetuosidade da linguagem leva por vezes uma pessoa a perder-se, daí a esperança, que salta da fraqueza temporária, de uma repentina e mais forte iluminação mesmo no momento seguinte, ou de uma forte confiança em si próprio, ou mero desleixo, ou uma impressão forte e actual de que uma pessoa quer a todo o custo descarregar no futuro, portanto a opinião de que o verdadeiro entusiasmo no presente justifica toda e qualquer confusão futura, ou o deleite nas frases que se elevam no meio com um ou dois empurrões e que a pouco e pouco abrem completamente a boca mesmo que depois a deixem fechar com demasiada rapidez e tortuosidade, ou a leve possibilidade de um juízo claro e decisivo, ou o esforço para dar mais fluência ao discurso que realmente já acabou, ou o desejo de abandonar à pressa o tema se assim tiver de ser, de rastos, ou o desespero que tenta encontrar uma saída para a sua pesada respiração, ou o anseio por uma luz sem sombra — tudo isto pode levar uma pessoa a perder-se em frases como: «O livro que acabei agora mesmo é o mais belo que jamais li» ou «é tão belo,
O Individuo Indestrutivel
Teoricamente, só há uma possibilidade perfeita de felicidade: acreditar no indestrutível em si sem a ele aspirar.
O indestrutível é um; cada indivíduo o é ao mesmo tempo que é comum a todos, daí esse laço indissolúvel entre os homens, que é sem exemplo.
Limitadores do Espírito
Cada vez que se liberta o espírito humano de uma hipótese que o limitava de modo desnecessário, que o forçava a ver errada ou parcialmente, a efectuar combinações erróneas, a enveredar por sofismas em vez de articular juízos rigorosos, presta-se-lhe já um importante serviço. Porque o espírito humano passa então a ver os fenómenos com maior liberdade, passa a encará-los noutras combinações, em diferentes relações, ordena-os a seu modo, e recupera a possibilidade de errar por si próprio e à sua maneira. Coisa que é inestimável, porque não tardará que, na sequência, o espírito humano consiga descobrir os seus próprios erros.
A Opinião Pura e Elevada
A opinião que se emite ou a regra que se estabelece não tem que se importar com as circunstâncias em que se encontram os homens nem com as possibilidades de acolhimento ou recusa que o mundo lhe oferece; o que é hoje grão seco levanta-se amanhã sobre as ondas do campo como a espiga mais alta e mais cheia; o culto da verdade não se compadece com a adoração dos deuses que presidem aos dias nem com a vã agitação que é de regra no formigueiro humano; cada um tomará o que se diz como quiser; a sua atitude, porém, só interessará enquanto fenómeno base para uma nova legalidade.
Não há aqui nem indiferença, nem egoísmo; é mais larga a alma que a par do amor dos homens actuais sente vibrar o amor dos homens do futuro, mais forte o espírito que se orienta para o eterno; a justiça sempre o terá a seu lado armado de todas as armas, não porque sinta para ela um impulso momentâneo mas porque a defende em qualquer tempo; e sempre se há-de recusar, sejam quais forem as razões, a passar em claro uma injustiça ou a servir-se de qualquer meio, apenas porque tal proceder se aparenta vantajoso aos seus interesses ou aos interesses dos seus amigos.
Não se Consegue ser Exterior à Nossa Própria Indiferença
A dificuldade da existência estava precisamente neste problema concreto: por diversas vezes Walser se vira, ao longe, alegre, e também de longe observara a sua própria tristeza ou irritação. Nada de mais. Mas o que nunca conseguira era ser exterior à indiferença; ser exterior a si nos momentos, inúmeros, em que se encontrava neutro face às coisas, inerte e em estado de espera perante a possibilidade de um acto ou do seu contrário. Quanto mais intensidade existia no corpo, mais fácil era afastar-se, ser testemunha de si próprio. As dificuldades de observação privilegiada, de uma existência que lhe pertencia, surgiam assim, de um modo extremo, quando a intensidade dos sentimentos era quase nula. Se ele já lá não estava – na existência – como se poderia ainda afastar mais?
Mas o que era concretamente este lá, este outro sítio que por vezes parecia ser o seu centro outras vezes o seu oposto? Sobre a localização geral desse lá, Walser não tinha dúvidas: era o cérebro. Era ali que tudo se passava ou que tudo o que se passava era observado. Ali fazia, e ali via-se a fazer. Como qualquer louco normal, pensou Walser, e sorriu da fórmula.
Gonçalo M.
A Racionalidade como Solução de Todos os Males do Mundo
A racionalidade pode ser definida como o hábito de considerar todos os nossos desejos relevantes, e não apenas aquele que sucede ser o mais forte no momento. (…) A racionalidade completa é, sem dúvida, ideal inatingível; porém, enquanto continuarmos a classificar alguns homens como lunáticos, é claro que achamos uns mais racionais que outros. Acredito que todo o progresso sólido no mundo consiste de um aumento de racionalidade, tanto prática como teórica. Pregar uma moralidade altruística parece-me um tanto inútil, porque só falará aos que já têm desejos altruísticos. Mas pregar racionalidade é um tanto diferente, porque ela nos ajuda, de modo geral, a satisfazer os nossos próprios desejos, quaisquer que sejam. O homem é racional na proporção em que a sua inteligência orienta e controla os seus desejos.
Acredito que o controle dos nossos actos pela inteligência é, afinal, o que mais importa e a única coisa capaz de preservar a possibilidade de vida social, enquanto a ciência expande os meios de que dispomos para nos ferir e destruir. O ensino, a imprensa, a política, a religião – numa palavra, todas as grandes forças do mundo – estão actualmente do lado da irracionalidade; estão nas mãos dos homens que lisonjeiam Populus Rex com o fito de desencaminhá-lo.
Sem Poesia Não Há Humanidade
Sem Poesia não há Humanidade. É ela a mais profunda e a mais etérea manifestação da nossa alma. A intuição poética ou orfaica antecede, como fonte original, o conhecimento euclidiano ou científico. E nos dá o sentido mais perfeito e harmónico da vida. Aperfeiçoando o ser humano, afasta-o do antropóide e aproxima-o dos antropos. Que a mocidade actual, obcecada pela bola e pelo cinema, reduzida quase a uma fotografia peculiar e uma espécie de máquina de fazer pontapés, despreza o seu aperfeiçoamento moral; e, com o seu fato de macaco, prefere regressar à Selva a regressar ao Paraíso. E assim, igualando-se aos bichos, mente ao seu destino, que é ser o coração e a consciência do Universo: o sagrado coração e o santo espírito. Eis o destino do homem, desde que se tornou consciente. E tornou-se consciente, porque tal acontecimento estava contido nas possibilidades da Natureza. Sim, a nossa consciência é a própria Natureza numa autocontemplação maravilhosa. Ou é o próprio Criador numa visão da sua obra, através do homem. E, vendo-a, desejou corrigi-la, transfigurando-se em Redentor.
Os Ses Importantes da Vida
Hoje escrevo-te sobre os ses importantes da vida. Agarra-te bem a eles, e depois, quando te sentires assustada em algum momento, volta a agarrar-te a eles. Vais ver que nunca te vai faltar nada. Prometo.
Se amares com toda a segurança, desiste de amar, porque, ficas agora a saber, quando se ama com toda a segurança não se ama coisa nenhuma.
Se não tiveres medo de dizer que amas, como se sentisses que estavas a expor o mais imenso lado de ti, desiste de amar, porque, ficas agora a saber, é só o que nos faz ter medo que vale a pena ter medo perder.Se não adormeceres todos os dias com uma inexplicável vontade de voltar a acordar só para estares nos braços da pessoa com quem adormeceste, desiste de amar, porque, ficas agora a saber, só o que nos faz adormecer felizes sem deixar de nos fazer ter vontade de acordar felizes é que é mesmo amor.
Se não acordares todos os dias com uma vontade inexplicável de voltar a adormecer só para poderes adormecer em paz ao lado de quem amas, desiste de amar, porque, ficas agora a saber, só o que nos faz acordar felizes sem deixar de nos fazer ter vontade de adormecermos felizes é que é mesmo amor.
Têm-se Deveres Conforme o Alcance do Espírito
Em quase todos os acontecimentos da vida, uma alma generosa vê a possibilidade duma acção de que uma alma comum não tem a mesma ideia. No próprio instante em que a possibilidade dessa acção se torna visível para a alma generosa, é de seu interesse levá-la a cabo. Se não executasse essa acção que acaba de lhe surgir no espírito, desprezar-se-ia a si própria; seria infeliz. Têm-se deveres conforme o alcance do espírito. (…) É contra a natureza do homem, é impossível para o homem não fazer sempre, e em qualquer momento que se queira examiná-lo, o que nesse momento é possível e lhe dá prazer.
Amo-te, Portugal
Portugal,
Estou há que séculos para te escrever. A primeira vez que dei por ti foi quando dei pela tua falta. Tinha 19 anos e estava na Inglaterra. De repente, deixei de me sentir um homem do mundo e percebi, com tristeza, que era apenas mais um dos teus desesperados pretendentes.
Apaixonaste-me sem que eu desse por isso. Deve ter sido durante os meus primeiros 18 anos de vida, quando estava em Portugal e só queria sair de ti. Insinuaste-te. Não fui eu que te escolhi. Quando descobri que te amava, já era tarde de mais.
Eu não queria ficar preso a ti; queria correr mundo. Passei a querer correr para ti – e foi para ti que corri, mal pude.
Teria preferido chegar à conclusão que te amava por uma lenta acumulação de razões, emoções e vantagens. Mas foi ao contrário. Apaixonei-me de um dia para o outro, sem qualquer espécie de aviso, e desde esse dia, que remédio, lá fui acumulando, lentamente, as razões por que te amo, retirando-as uma a uma dentre todas as outras razões, para não te amar, ou não querer saber de ti.
Custou-me justificar o meu amor por ti.
A Moral entre a Verdade e a Subjectividade
Um homem que busca a verdade torna-se sábio; um homem que pretende dar rédea solta à sua subjectividade torna-se, talvez, escritor; e que fará um homem que busca algo que se situa entre essas duas hipóteses? Mas tais exemplos, os de algo que está «entre», encontramo-los em qualquer sentença moral, a começar pela mais simples e mais conhecida: «não matarás». Vê-se imediatamente que não é nem uma verdade nem uma experiência subjectiva. Sabe-se que, em muitos aspectos, nos conformamos estritamente a ela, mas que, por outro lado, se aceitam numerosas excepções, ainda que perfeitamente delimitadas; no entanto, num grande número de casos de um terceiro tipo – por exemplo na imaginação, na esfera dos desejos, nas peças de teatro ou no prazer que experimentamos ao ler as notícias dos jornais – deixamo-nos oscilar descontroladamente entre a aversão e a atracção.
Por vezes aquilo a que não podemos chamar nem verdade nem experiência pessoal recebe o nome de imperativo. Tais imperativos foram associados aos dogmas da religião ou da lei, concedendo-lhes assim o carácter de uma verdade derivada, mas os romancistas narram as excepções, a começar pelo sacrifício de Abraão e terminando na bela mulher jovem que matou o amante a tiro,
Limiar da Maldade
São conhecidos da física fenómenos que ocorrem apenas a magnitudes limiares, que de modo algum existem até determinado limiar codificado e conhecido da natureza ter sido ultrapassado… É evidente que a malvadez também tem o seu limiar. Sim, um ser humano hesita e oscila entre o bem e o mal toda a sua vida… Mas enquanto o limiar de maldade não for ultrapassado, a possibilidade de retorno mantém-se e o indivíduo mantém-se dentro dos limites da nossa esperança.
Antecipar a Recusa
Não cometas a asneira de pedir a alguém um objecto raro que lhe é querido, sobretudo se não tens necessidade expressa dele. Porque, se to recusar, sentirá que te ofendeu e guardar-te-á rancor; se consentir, também te quererá mal, porque passará a considerar-te como um pedinchão incómodo e indelicado.
Como é sempre desagradável ouvir uma recusa, nada peças que não estejas certo de obter. Por isso é que mais vale nada pedir directamente, mas dar a entender por meias palavras o que nos faz falta.
Quando tencionas solicitar um favor, não o deixes adivinhar antes de o teres obtido. Declara mesmo abertamente que nada esperas nesse sentido. Anuncia por toda a parte que foi concedido a outra pessoa aquilo que por um momento cobiçaras e vai felicitar o feliz eleito.
Se te recusarem alguma coisa, compra uma pessoa que tenha mais possibilidades que tu, de modo a que te entregue discretamente o objecto desejado, uma vez obtido.
Se alguém disputa uma honra que também cobiças, envia-lhe secretamente um emissário que, em nome da amizade, o dissuada falando-lhe dos múltiplos obstáculos que em todo o caso teria de enfrentar.
A Dualidade do Simbolismo
Um símbolo contém uma verdade e uma inverdade, indestrinçáveis para o sentimento. Se o tomarmos tal como é e o configurarmos através dos sentidos e à imagem da realidade, nascem daí o sonho e a arte; mas entre estes e a vida real e plena ergue-se uma parede de vidro. Se o apreendermos com a razão e separarmos o que não coincide do que coincide perfeitamente, nascem daí a verdade e o conhecimento, mas arruinamos o sentimento. À semelhança daquelas estirpes de bactérias que dividem em duas partes a matéria orgânica, a espécie humana fragmenta em duas a condição vital primordial do símbolo: a matéria sólida da realidade e da verdade, e a atmosfera vítrea da intuição, da fé e do artefacto. Parece não haver uma terceira possibilidade; mas quantas vezes algo de incerto acaba por ser desejado, se não metermos muito a reflexão no caso!
Um Cidadão Livre
Ele é um cidadão livre e seguro da Terra, pois está atado a uma corrente suficientemente longa para lhe dar livre acesso a todos os espaços terrenos e, no entanto, longa apenas para que nada seja capaz de arrancá-lo dos limites da Terra. Mas é, ao mesmo tempo, um cidadão livre e seguro do céu, uma vez que está igualmente atado a uma corrente celeste calculada de maneira semelhante. Assim, se quer descer à Terra, a coleira do céu enforca-o; se quer subir ao céu, enforca-o a coleira da Terra. A despeito de tudo, tem todas as possibilidades e sente-as, recusando-se mesmo a atribuir o que acontece a um erro cometido no primeiro acto de acorrentar.
O Prazer Puro do Amor para uma Rapariga Honesta
O que, subconscientemente, na rapariga honesta torna agradável o namoro, é nitidamente distrinçável. Um acto agradável é agradável não só no acto mas na antecipação dele; e, ausentes certos elementos psicológicos não orientadores desse acto, em geral, na antecipação ainda não imediata, porque na antecipação para daí a pouco a ânsia de chegar a ele, amorna (ou, perturba) um tanto o […] da esperança. — Ora o «flirt», o namoro, não é senão, analisada sem escrúpulo a sua essência íntima, uma antecipação da possibilidade de uma cópula. Repare-se que não é a antecipação de uma cópula, o que, por mais directo, é mais perturbante. O que se chama o prazer puro do amor (no que é namoro ou «flirt») não é senão um prazer muito grande porque isento (e nesse sentido puro) do elemento perturbante do directo desejo, ou imediata esperança, do coito.
Nada é Verdadeiramente Satisfatório
Nada é verdadeiramente satisfatório. Mesmo a arte a que um artista é vocacionado, e sobre a qual e para a qual vive, está sempre aquém do seu desejo. Nunca atinge aquele nível, aquele andar que desejaria. Está sempre a tentar, a aproximar-se do limite das possibilidades. No fundo, do absoluto. Um absoluto que se não atinge, [que se] ignora mesmo. A única coisa que sabemos ao certo é: ninguém nasce senão para morrer. Morrer mais cedo ou morrer mais tarde. Tem esse privilégio: acabar com a vida antes do fim natural dela. Se estiver desesperado, acontece. Justamente quando perde a esperança. Quando perde a esperança, perdeu tudo, e então liquida-se.
[Pensou alguma vez? Houve algum momento na sua vida tão desesperançado? Teve tantos reveses…]
Não. Suponho que ninguém deixa de pensar na morte. E quando se chega à minha idade, está-se mais consciente de que se aproxima o fim. Portanto, ele tem que se preparar para esse final. Há muita gente que conheci que se suicidou por isto ou por aquilo. E há o problema da eutanásia, quando o sofrimento é muito grande, a experiência é nula e as pessoas não podem sequer matar-se, têm que pedir que alguém as mate.
Os Povos Felizes não têm História
‘Os povos felizes não têm história’. De onde se infere que a supressão da história tornaria os povos mais felizes. O menor olhar sobre os acontecimentos deste mundo reencontra essa mesma conclusão. O esquecimento é o benefício que a história quer corromper. Nada, na história, serve para ensinar aos homens a possibilidade de viverem em paz. É o ensino oposto que dela se destaca – e se faz acreditar.