O Indivíduo e a Colectividade
Em vez de afirmarmos os direitos do Homem através dos indivíduos, começámos a falar dos direitos da Colectividade. Vimos introduzir-se insensivelmente uma moral do Colectivo que negligencia o Homem. Esta moral explicará claramente por que razão o indivíduo se deve sacrificar à Comunidade. Já não explicará, sem artifícios de linguagem, por que razão uma Comunidade se deve sacrificar por um só homem. Por que razão é equitativo que mil morram para libertar um só da prisão da injustiça. Ainda nos lembramos disso, mas esquecemo-lo pouco a pouco. E, no entanto, é neste princípio, pelo qual nos distinguimos tão claramente da formiga, que reside acima de tudo a nossa grandeza.
Textos sobre Princípio
229 resultadosA Importância dos Princípios
Entre os homens, alguns há que possuem naturalmente um excelente carácter e que assimilam sem necessidade de longa instrução os princípios tradicionais, que abraçam a via da moralidade desde o primeiro momento em que dela ouvem falar; do meio destes é que surgem aqueles génios que concitam em si toda a gama de virtudes, que produzem eles mesmos virtudes. Mas aos outros, àqueles que têm o espírito embotado, obtuso ou dominado por tradições erróneas, a esses há que raspar a ferrugem que têm na alma. Mais ainda: se transmitirmos os preceitos básicos da filosofia aos primeiros, rapidamente eles atingirão o mais alto nível, pois estão naturalmente inclinados ao bem; se o fizermos aos outros, os de natureza mais fraca, ajudá-los-emos a libertarem-se das suas convicções erradas. Por aqui podes ver como são necessários os princípios básicos. Temos instintos em nós que nos fazem indolentes ante certas coisas, e atrevidos perante outras; ora, nem este atrevimento nem aquela indolência podem ser eliminados se primeiro não removermos as respectivas causas, ou seja, a admiração infundada ou o receio infundado.
Enquanto tivermos em nós esses instintos, bem poderás dizer: “estes são os teus deveres para com teu pai, ou para com os filhos,
O Falso Conforto da Religião
O homem comum entende como sendo a sua religião um sistema de doutrinas e promessas que, por um lado lhe explica os enigmas deste mundo com uma perfeição invejável, e que por outro lhe garante que uma Providência atenta cuidará da sua existência e o compensará, numa futura existência, por qualquer falha nesta vida. O homem comum só consegue imaginar essa Providência sob a figura de um pai extremamente elevado, pois só alguém assim conseguiria compreender as necessidades dos filhos dos homens ou enternecer-se com as suas orações e aplacar-se com os sinais dos seus remorsos. Tudo isto é tão manifestamente infantil, tão incongruente com a realidade, que para aquele que manifeste uma atitude amistosa para com a humanidade é penoso pensar que a grande maioria dos mortais nunca será capaz de estar acima desta visão de vida.
É ainda mais humilhante descobrir como é grande o número de pessoas, hoje em dia, que não podem deixar de perceber que essa religião é insustentável, e, no entanto, tentam defendê-la sucessivamente, numa série de lamentáveis actos retrógados. Gostaríamos de pertencer ao número dos crentes, para podermos advertir os filósofos que tentam preservar o Deus da religião substituindo-o por um princípio impessoal,
Não Tenho Rancores nem Ódios
Pertenço a uma geração que ainda está por vir, cuja alma não conhece já, realmente, a sinceridade e os sentimentos sociais. Por isso não compreendo como é que uma criatura fica desqualificada, nem como é que ela o sente. É oca de sentido, para mim, toda essa (…) das conveniências sociais. Não sinto o que é honra, vergonha, dignidade. São para mim, como para os do meu alto nível nervoso, palavras de uma língua estrangeira, como um som anónimo apenas.
Ao dizerem que me desqualificaram, eu não percebo senão que se fala de mim, mas o sentido da frase escapa-me. Assisto ao que me acontece, de longe, desprendidamente, sorrindo ligeiramente das coisas que acontecem na vida. Hoje, ainda ninguém sente isto; mas um dia virá quem o possa perceber.
Procurei sempre ser espectador da vida, sem me misturar nela. Assim, a isto que se passa comigo, eu assisto como um estranho; salvo que tiro dos pobres acontecimentos que me cercam a volúpia suave de (…).Não tenho rancor nenhum a quem provocou isto. Eu não tenho rancores nem ódios. Esses sentimentos pertencem àqueles que têm uma opinião, ou uma profissão ou um objectivo na vida. Eu não tenho nada dessas coisas.
A Força da Ignorância
Por que causa a ignorância nos mantém agarrados com tanta força? Primeiro, porque não a repelimos com suficiente energia nem usamos todas as nossas forças para nos libertarmos dela; depois, porque não confiamos o bastante nas lições dos sábios nem as interiorizamos como devíamos, antes tratamos uma tão magna questão de forma leviana. Como pode alguém, aliás, aprender suficientemente a lutar contra os vícios se apenas dedica a esse estudo o tempo que os vícios lhe deixam livre?…
Nenhum de nós aprofunda bastante esta matéria; abordamos o assunto pela rama e, como gente extremamente ocupada, achamos que dedicar umas horas à filosofia é mais do que suficiente. E o que mais nos prejudica é a facilidade com que o nosso amor próprio se satisfaz. Se encontramos alguém que nos ache homens de bem, homens esclarecidos e irrepreensíveis, logo nos mostramos de acordo! Nem sequer nos contentamos com louvores comedidos: tudo quanto a adulação despudoradamente nos atribui, nós o assumimos como de pleno direito. Se alguém nos declara os melhores e mais sábios do mundo, nós assentimos, mesmo quando sabemos que esse alguém é useiro e vezeiro na mentira! A nossa autocomplacência vai mesmo tão longe que pretendemos ser louvados em nome de princípios que as nossas acções frontalmente desmentem (…) A consequência é que ninguém mostra vontade de corrigir o seu carácter,
Não são as Circunstâncias que Decidem a Nossa Vida
A nossa vida, como repertório de possibilidades, é magnífica, exuberante, superior a todas as históricamente conhecidas. Mas assim como o seu formato é maior, transbordou todos os caminhos, princípios, normas e ideais legados pela tradição. É mais vida que todas as vidas, e por isso mesmo mais problemática. Não pode orientar-se no pretérito. Tem de inventar o seu próprio destino.
Mas agora é preciso completar o diagnóstico. A vida, que é, antes de tudo, o que podemos ser, vida possível, é também, e por isso mesmo, decidir entre as possibilidades o que em efeito vamos ser. Circunstâncias e decisão são os dois elementos radicais de que se compõe a vida. A circunstância – as possibilidades – é o que da nossa vida nos é dado e imposto. Isso constitui o que chamamos o mundo. A vida não elege o seu mundo, mas viver é encontrar-se, imediatamente, em um mundo determinado e insubstituível: neste de agora. O nosso mundo é a dimensão de fatalidade que integra a nossa vida.
Mas esta fatalidade vital não se parece à mecânica. Não somos arremessados para a existência como a bala de um fuzil, cuja trajectória está absolutamente pré-determinada. A fatalidade em que caímos ao cair neste mundo – o mundo é sempre este,
Possuídos pelo Demónio
A invenção do demónio. Se estamos possuídos pelo demónio, não pode ser só por um, porque então viveríamos, pelo menos na terra, em paz, como se fosse com Deus, em união, sem contradições, sem reflexão, sempre seguros do homem atrás de nós. O seu rosto não nos amedrontaria, porque, como seres diabólicos, teríamos, mesmo que um pouco sensíveis à vista, a esperteza suficiente de preferir sacrificar uma mão para lhe tapar a cara com ela. Se estivéssemos possuídos apenas por um demónio, um que tivesse uma visão tranquila, calma, de toda a nossa natureza, e liberdade para dispor de nós em qualquer momento, esse demónio teria também poder suficiente para nos manter durante o âmbito de uma vida humana muito acima do espírito de Deus em nós, e mesmo para nos balançar de um lado para o outro para que assim não víssemos nenhum sinal dele e consequentemente não fôssemos perturbados por esse lado. Só uma multidão de demónios pode ser responsável pelas nossas desgraças terrenas. Porque não se matam eles uns aos outros até só ficar um, ou porque não ficam subordinados a um grande demónio? Qualquer das duas hipóteses estaria de acordo com o princípio diabólico de nos enganar tanto quanto possível.
Tudo é Avaliado pela Nossa Vaidade
Para nada ser permanente em nós, até o ódio se extingue: cansamo-nos de aborrecer: a nossa inclinação tem intervalos, em que fica isenta da sua maldade natural; não esquece porém o ódio, que teve por princípio a vaidade ofendida; assim como nunca o favor esquece quando se dirige, e tem por objectivo a vaidade de quem recebe o benefício. A nossa vaidade é a que julga tudo: dá estimação ao favor, e regula os quilates à ofensa; faz muito do que é nada; dos acidentes faz substância; e sempre faz maior tudo o que diz respeito a si. Nos benefícios pagamo-nos menos da utilidade, que do obséquio; nas ofensas consideramos mais o atrevimento da injúria, que o prejuízo do mal; por isso se sente menos a dor das feridas, do que o arrojo do impulso; e assim na vaidade se formam cicatrizes firmes, e seguras; porque a lembrança do agravo a cada instante as faz abrir de novo, e verter sangue.
O Princípio Fundamental da Sociedade
Abster-se reciprocamente de ofensas, da violência, da exploração, adaptar a sua própria vontade à de outro: tal coisa pode, num certo sentido tosco, tornar-se bom costume entre indivíduos, se existirem condições para tal (a saber, semelhança efectiva entre as suas quantidades de força e entre as suas escalas de valores e a homogeneidade dos mesmos dentro de um só organismo). Logo que, porém, se quisesse alargar este princípio, concebendo-o até como príncipio fundamental da sociedade, revelar-se-ia imediatamente como aquilo que é: vontade de negação da vida, princípio de dissolução e de decadência. Aqui é preciso pensar-se bem profundamente e defender-se de toda a fraqueza sentimentalista: a própria vida é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição daquilo que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e pelo menos, na melhor das hipóteses, exploração, – mas para que empregar palavras a que, desde há muito, se deu uma intenção difamadora?
Também aquele organismo dentro do qual conforme acima se admitiu, os indivíduos se tratam como iguais – e tal se dá em toda a aristocracia sã -, tem de fazer, no caso de ser um organismo vivo e não moribundo, ao enfrentar outros organismos, tudo o que os indivíduos dentro dele se abstêm de fazer entre si: terá de ser a vontade de poder personificada,
Do Juízo Estético
Toda a arte pressupõe regras na base das quais uma produção, se deve considerar-se artística, é representada, em primeiro lugar, como possível; mas o conceito das belas-artes não permite derivar o juízo sobre a beleza da produção de qualquer regra que tenha um conceito como princípio determinante, em virtude de pôr como fundamento um conceito do modo por que tal é possível. Assim, a arte do belo não pode inventar ela mesma a regra segundo a qual realizará a sua produção. Mas, como sem regra anterior um produto não pode ser artístico, é necessário que a natureza dê a regra de arte ao próprio sujeito (na concordância das suas faculdades), isto é, as belas-artes só podem ser o produto do génio.
Daí se conclui: 1º Que o génio é o talento de produzir aquilo de que se não pode dar regra determinada, mas não é a aptidão para o que pode ser apreendido consoante uma qualquer regra; portanto, a sua primeira característica é a originalidade. 2º Que as suas produções, visto que o absurdo também pode ser original, devem simultaneamente ser modelos, isto é, ser exemplares; por consequência, não sendo obras de imitação, têm de ser propostas à imitação das outras,
A Ideia de Moral Universal
Muito antes de o homem estar maduro para ser confrontado com uma atitude moral universal, o medo dos perigos da vida levaram-no a atribuir a vários seres imaginários, não palpáveis fisicamente, o poder de libertar as forças naturais que temia ou talvez desejasse. E ele acreditava que esses seres, que dominavam toda a sua imaginação, eram feitos fisicamente à sua imagem, mas eram dotados de poderes sobre-humanos. Estes foram os precursores primitivos da ideia de Deus. Nascidos inicialmente dos medos que enchiam a vida diária dos homens, a crença na existência de tais seres, e nos seus poderes extraordinários, teve uma influência tão forte nos homens e na sua conduta que é difícil de imaginar por nós. Por isso, não surpreende que aqueles que se empenharam em estabelecer a ideia de moral, abarcando igualmente todos os homens, o tenham feito associando-a intimamente à religião. E o facto de estas pretensões morais serem as mesmas para todos os homens pode ter tido muito a ver com o desenvolvimento da cultura religiosa da espécie humana desde o politeísmo até ao monoteísmo.
A ideia de moral universal deve, assim, a sua potência psicológica original àquela ligação com a religião. No entanto, noutro sentido,
O Terror do Optimismo
A verdadeira razão por que todos nós pensamos tão bem dos outros é que todos temos medo de nós próprios. A base do optimismo é o puro terror. Julgamos que somos generosos porque atribuímos ao nosso vizinho a posse daquelas virtudes que pensamos poderem vir a beneficiar-nos. Louvamos o banqueiro para podermos exceder o nosso crédito, e encontramos bons princípios no assaltante na esperança de que nos poupe as carteiras. Acredito em tudo o que disse. Tenho o maior dos desprezos pelo optimismo.
A Causa da Vontade
A nossa vida não passaria de uma série de caprichos, se a nossa vontade se determinasse por si mesma e sem motivos. Não temos vontade que não seja produzida por alguma reflexão ou por alguma paixão. Quando levanto a mão, é para fazer uma experiência com a minha liberdade ou por alguma outra razão. Quando me propõem um jogo de escolha entre par ou ímpar, durante o tempo em que as ideias de um e de outro se sucedem no meu espírito com rapidez, mescladas de esperança e temor, se escolho par, é porque a necessidade de fazer uma escolha se apresenta ao meu pensamento no momento em que par está aí presente. Proponha-se o exemplo que se quiser, demonstrarei a qualquer homem de boa-fé que não temos nenhuma vontade que não seja precedida por algum sentimento ou por algum arrazoado que a faz nascer. É verdade que a vontade tem também o poder de excitar as nossas ideias; mas é necessário que ela própria seja antes determinada por alguma causa.
A vontade não é nunca o primeiro princípio das nossas acções, ela é o seu último móbil; é o ponteiro que marca as horas num relógio e que o leva a dar as pancadas sonoras.
Com os Costumes andam os Aforismos
Com os costumes andam os aforismos. Assim, eis que eles tomam um carácter mais criticador e vibrante, isto na linguagem de Karl Kraus, homem sagaz e ventríloquo de certas causas que a sociedade não confia à voz pública.
Ele diz, por exemplo: «As mulheres, no Oriente, têm maior liberdade. Podem ser amadas». Ou então: «A vida de família é um ataque à vida privada». Ou ainda: «A democracia divide os homens em trabalhadores e preguiçosos. Não está destinada para aqueles que não têm tempo para trabalhar». Tudo isto, como axioma, lembra Bernard Shaw, esse inglês azedo e endiabrado cujo Manual do Revolucionário fez o encanto da nossa adolescência.
Todavia, o aforimo do homem de letras, se impressiona, quase nunca comove ninguém. O autêntico aforismo não é uma arte – é uma espécie de pastorícia cultural. Não está destinado a divertir nem a chocar as pessoas, mas, acima de tudo, propõe-se transmitir uma orientação. É uma lição, e não o pretexto para uma pirueta.
Os aforismos e paradoxos de Karl Kraus têm esse sabor irreverente que se diferencia da sabedoria, porque há algo de precipitado na sua confissão. Precisam de ser situados num estado de espírito, para serem aceites e compreendidos;
O Futuro do Homem
O homem pode sempre mais e coisa diversa daquilo que se esperaria dele. O homem é inacabado e inacabável e sempre aberto ao futuro. Não há homem total e não o haverá jamais. Por isso há dois modos de pensar o futuro do homem. Posso concebê-lo como um processo natural, análogo àquele que respeita aos objectos, e formular probabilidades. Ou então posso imaginar as situações que vão ocorrer sem saber a resposta que lhes dará o homem, sem saber como, através delas, mas espontaneamente, ele se encontrará a si próprio. No primeiro caso, aguardo um desenrolar necessário que poderia conhecer em princípio, mesmo se não o conheço. No segundo caso, o futuro, longe de ser o desenvolvimento de necessidades causais implicadas pela realidade dada, depende do que será realizado e vivido em liberdade. As inúmeras pequenas acções dos indivíduos, todas as suas livres decisões, todas as coisas que realizam, têm um alcance ilimitado. No primeiro caso submeto-me a uma necessidade contra a qual nada posso. No segundo procuro a fonte original que está na base da liberdade humana. Faço um apelo à vontade.
Caminhamos para um futuro que não pode ser conhecido, que, na sua totalidade, não está decidido.
O Excesso de Conhecimento sem Discernimento
Herdamos conhecimentos e invenções de todos os séculos; ficamos portanto mais ricos em bens do espírito: isso não nos pode ser contestado sem injustiça. Mas estaríamos nós próprios enganados se confundíssemos essa riqueza herdada e de empréstimo com o génio que a dá. Quantos desses conhecimentos adquiridos são estéreis para nós! Estranhos no nosso espírito onde não tiveram origem, acontece muitas vezes que eles confundem o nosso juízo muito mais do que o esclarecem. Arcamos sob o peso de tantas ideias, como aqueles estados que sucumbem por excesso de conquistas e em que a opulência introduz novos vícios e desordens mais terríveis; porque pouca gente é capaz de fazer bom uso do espírito alheio.
(…) O efeito das opiniões multiplicadas além das forças do espírito é produzir contradições e abalar a certeza dos melhores princípios. Os objectos apresentados sob um número excessivo de faces não se podem organizar, nem desenvolver, nem pintar distintamente na imaginação dos homens. Incapazes de conciliar todas as suas ideias, tomam os diversos lados de uma mesma coisa como contradições da sua natureza. Vários não querem comparar a opinião dos filósofos. Não examinam se na oposição dos seus princípios, alguém fez pender a balança para o seu lado;
O Âmago da Virtude
Haverá filósofos que pretendem induzir-nos a dar grande valor à prudência, a praticarmos a virtude da coragem, a nos aplicarmos à justiça — se for possível — com maior empenho ainda do que às restantes virtudes. Pois bem: de nada servirão estes conselhos se nós ignorarmos o que é a virtude, se ela é una ou múltipla, se as virtudes são individualizadas ou interdependentes, se quem possui uma virtude possui também as restantes ou não, qual a diferença que existe entre elas. Um operário não precisa de investigar qual a origem ou a utilidade do seu trabalho, tal como o bailarino o não tem que fazer quanto à arte da dança: os conhecimentos relativos a todas estas artes estão circunscritos a elas mesmas, porquanto elas não têm incidência sobre a totalidade da vida. A virtude, porém, implica tanto o conhecimento dela própria como o de tudo o mais; para aprendermos a virtude temos de começar por aprender o que ela é. Uma acção não pode ser correcta se não for correcta a vontade, pois é desta que provém a acção. Também a vontade nunca será correcta se não for correcto o carácter, porquanto é deste que provém a vontade. Finalmente,
A Vida em Conformidade com Princípios mais Elevados
Se a pessoa der ouvidos às subtis mas constantes sugestões do seu espírito, sem dúvida autênticas, não vê a que extremos, e até loucura, ele pode levá-la; contudo, por aí envereda o seu caminho à medida que cresce em resolução e fé. A mais leve objecção segura que um homem sadio fizer, com o tempo prevalecerá sobre os argumentos e costumes da humanidade. Nenhum homem jamais seguiu a sua índole a ponto de esta o extraviar. Embora o resultado fosse fraqueza física, ainda assim talvez ninguém pudesse dizer que as consequências eram lamentáveis, já que representariam a vida em conformidade com princípios mais elevados. Se o dia e a noite são de tal natureza que vós os saudais com alegria, se a vida emite uma fragrância de flores e ervas aromáticas e se torna mais elástica, mais cintilante e mais imortal – aí está o vosso êxito.
A natureza inteira é a vossa congratulação e tendes motivos terrenos para bendizer-vos. Os maiores lucros e valores estão ainda mais longe de serem apreciados. Chegamos facilmente a duvidar de que existam. Logo os esquecemos. Constituem, entretanto, a realidade mais elevada.
Talvez os factos mais estarrecedores e verdadeiros nunca sejam comunicados de homem a homem.
A História e o Progresso ao Sabor do Vento
Na sua maior parte a história faz-se sem autores. Não acontece a partir de um centro, mas da periferia. De pequenas causas. Talvez não seja tão difícil como se pensa fazer do homem gótico ou do grego antigo o homem da civilização moderna. Porque a natureza humana é tão capaz do canibalismo como da crítica da razão pura; é capaz de realizar as duas coisas com as mesmas convicções e as mesmas qualidades, se as circunstâncias forem propícias, e nesses processos a grandes diferenças externas correspondem diferenças internas mínimas.
(…) O caminho da história não é o de uma bola de bilhar que, uma vez jogada, percorre uma determinada trajectória; assemelha-se antes ao caminho das nuvens, ou ao de um vagabundo a deambular pelas vielas, que se distrai a observar, aqui uma sombra, ali um magote de gente, mais adiante o recorte curioso das fachadas, até que por fim chega a um ponto que não conhece e por onde nem tencionava passar. Há no decurso da história universal um certo erro de percurso. O presente é sempre como a última casa de uma cidade, que de certo modo já não faz bem parte do casario dessa cidade. Cada geração pergunta,
Moralidade e Felicidade
A felicidade é o estado em que se encontra no mundo um ser racional para quem, em toda a sua existência, tudo decorre conforme o seu desejo e a sua vontade; pressupõe, por consequência, o acordo da natureza com todo o conjunto dos fins deste ser, e simultaneamente com o fundamento essencial de determinação da sua vontade. Ora a lei moral, como lei da liberdade, obriga por meio de fundamentos de determinação, que devem ser inteiramente independentes da natureza e do acordo dela com a nossa faculdade de desejar (como motor). Porém, o ser agente racional que actua no mundo não é simultaneamente causa do mundo e da própria natureza. Assim, pois, na lei moral não há o menor fundamento para uma conexão necessária entre a moralidade e a felicidade, com ela proporcionada, num ser que, fazendo parte do mundo, dele depende; este ser, precisamente por isso, não pode ser voluntariamente a causa desta natureza nem, no que à felicidade respeita, fazer com que, pelas suas próprias forças, coincida perfeitamente com os seus próprios princípios práticos.
E, todavia, no problema prático que a razão pura nos prescreve, isto é, na prossecução do soberano bem, tal acordo é postulado como necessário: devemos procurar realizar o soberano bem,