Textos sobre Estado de Clarice Lispector

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Textos de estado de Clarice Lispector. Leia este e outros textos de Clarice Lispector em Poetris.

Liberdade e Eternidade

A liberdade que às vezes sentia não vinha de reflexões nítidas, mas de um estado como feito de percepções por demais orgânicas para serem formuladas em pensamentos. Às vezes no fundo da sensação tremulava uma ideia que lhe dava leve consciência de sua espécie e de sua cor.

O estado para onde deslizava quando murmurava: eternidade. O próprio pensamento adquiria uma qualidade de eternidade. Aprofundava-se magicamente e alargava-se, sem propriamente um conteúdo e uma forma, mas sem dimensões também. A impressão de que se conseguisse manter-se na sensação por mais uns instantes teria uma revelação — facilmente, como enxergar o resto do mundo apenas inclinando-se da terra para o espaço. Eternidade não era só o tempo, mas algo como a certeza enraizadamente profunda de não poder contê-lo no corpo por causa da morte; a impossibilidade de ultrapassar a eternidade era eternidade; e também era eterno um sentimento em pureza absoluta, quase abstracto. Sobretudo dava ideia de eternidade a impossibilidade de saber quantos seres humanos se sucederiam após seu corpo, que um dia estaria distante do presente com a velocidade de um bólido.

Definia eternidade e as explicações nasciam fatais como as pancadas do coração. Delas não mudaria um termo sequer,

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Daqui a Vinte e Cinco Anos

Perguntaram-me uma vez se eu saberia calcular o Brasil daqui a vinte e cinco anos. Nem daqui a vinte e cinco minutos, quanto mais vinte e cinco anos. Mas a impressão-desejo é a de que num futuro não muito remoto talvez compreendamos que os movimentos caóticos atuais já eram os primeiros passos afinando-se e orquestrando-se para uma situação económica mais digna de um homem, de uma mulher, de uma criança. E isso porque o povo já tem dado mostras de ter maior maturidade política do que a grande maioria dos políticos, e é quem um dia terminará liderando os líderes. Daqui a vinte e cinco anos o povo terá falado muito mais.
Mas se não sei prever, posso pelo menos desejar. Posso intensamente desejar que o problema mais urgente se resolva: o da fome. Muitíssimo mais depressa, porém, do que em vinte e cinco anos, porque não há mais tempo de esperar: milhares de homens, mulheres e crianças são verdadeiros moribundos ambulantes que tecnicamente deviam estar internados em hospitais para subnutridos. Tal é a miséria, que se justificaria ser decretado estado de prontidão, como diante de calamidade pública. Só que é pior: a fome é a nossa endemia, já está fazendo parte orgânica do corpo e da alma.

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O Casal Comum

Depois da época de palavras de amor, de palavras de raiva, de palavras, as relações entre os dois tornaram-se aos poucos impossíveis de resultar numa frase ou numa realidade clara. À medida que estavam casados há tanto tempo, as divergências, as desconfianças, certa rivalidade jamais chegavam à tona, embora elas existissem entre eles como o plano dentro do qual se entendiam. Esse estado quase impedia uma ofensa e uma defesa, e jamais uma explicação. Formavam o que se chama um casal comum.

Mais do que Amor

O amor veio afirmar todas as coisas velhas de cuja existência apenas sabia sem nunca ter aceito e sentido. O mundo rodava sob seus pés, havia dois sexos entre os humanos, um traço ligava a fome à saciedade, o amor dos animais, as águas das chuvas encaminhavam-se para o mar, crianças eram seres a crescer, na terra o broto se tornaria planta. Não poderia mais negar… o quê? — perguntava-se suspensa. O centro luminoso das coisas, a afirmação dormindo em baixo de tudo, a harmonia existente sob o que não entendia.

Erguia-se para uma nova manhã, docemente viva. E sua felicidade era pura como o reflexo do sol na água. Cada acontecimento vibrava em seu corpo como pequenas agulhas de cristal que se espedaçassem. Depois dos momentos curtos e profundos vivia com serenidade durante largo tempo, compreendendo, recebendo, resignando-se a tudo. Parecia-lhe fazer parte do verdadeiro mundo e estranhamente ter-se distanciado dos homens. Apesar de que nesse período conseguia estender-lhes a mão com uma fraternidade de que eles sentiam a fonte viva. Falavam-lhe das próprias dores e ela, embora não ouvisse, não pensasse, não falasse, tinha um olhar bom — brilhante e misterioso como o de uma mulher grávida.

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Estado de Graça

Quem já conheceu o estado de graça reconhecerá o que vou dizer. Não me refiro à inspiração, que é uma graça especial que tantas vezes acontece aos que lidam com arte. O estado de graça de que falo não é usado para nada. É como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existe. Nesse estado, além da tranquila felicidade que se irradia de pessoas e coisas, há uma lucidez que só chamo de leve porque na graça tudo é tão, tão leve. E uma lucidez de quem não adivinha mais: sem esforço, sabe. Apenas isto: sabe. Não perguntem o quê, porque só posso responder do mesmo modo infantil: sem esforço, sabe-se.
E há uma bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se transforma num dom. E se sente que é um dom porque se está experimentando, numa fonte direta, a dádiva indubitável de existir materialmente.
No estado de graça vê-se às vezes a profunda beleza, antes inatingível, de outra pessoa. Tudo, aliás, ganha uma espécie de nimbo que não é imaginário: vem do esplendor da irradiação quase matemática das coisas e das pessoas. Passa-se a sentir que tudo o que existe — pessoa ou coisa — respira e exala uma espécie de finíssimo resplendor de energia.

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Estado Agudo de Felicidade

Com duas pessoas eu já entrei em comunicação tão forte que deixei de existir, sendo. Como explicar? Olhávamo-nos nos olhos e não dizíamos nada, e eu era a outra pessoa e a outra pessoa era eu. É tão difícil falar, é tão difícil dizer coisas que não podem ser ditas, é tão silencioso. Como traduzir o profundo silêncio do encontro entre duas almas? E dificílimo contar: nós estávamos nos olhando fixamente, e assim ficamos por uns instantes. Éramos um só ser. Esses momentos são o meu segredo. Houve o que se chama de comunhão perfeita. Eu chamo isso de: estado agudo de felicidade. Estou terrivelmente lúcida e parece que estou atingindo um plano mais alto de humanidade. Foram os momentos mais altos que jamais tive.