Pais Aprisionados
As crianças tornaram-se uma arma de arremesso à medida de quase tudo. Justificam as discussões entre marido e mulher, justificam a falta de generosidade para com o próximo, justificam a indisponibilidade e a inacção em geral – e no fim, em muitos casos (…), ainda nos absolvem pelo fracasso a que, pulverizados os sonhos da infância, os objectivos da juventude e as agendas da primeira idade adulta, nos vemos a certa altura obrigados a resumir o balanço das nossas vidas. E talvez haja, afinal, uma certa racionalidade no cosmos. Talvez haja uma razão para nunca, até hoje, nós não termos tido filhos, eu e outros como eu. Talvez nenhum de nós esteja ainda pronto para resistir à inevitável tentação de transformar os filhos num desmentido oficial para a nossa frustração. Talvez, no dia em que os tivermos, estejamos já preparados para conter o impulso de culpá-los por essa frustração. E talvez sejamos nós, enfim, os primeiros a fugir à inclinação para considerar que a nossa vida apenas começou no dia em que começou a vida dos nossos filhos. Até porque, disto tenho eu a certeza, filhos de pais cuja memória alcança para além do dia do primeiro parto resultam sempre em adultos mais saudáveis,
Textos sobre Infância de Joel Neto
3 resultadosCidadão do Mundo
De todas as grandes tiradas da História, em boa verdade, aquela que eu mais depressa aprendera a detestar fora essa do «cidadão do mundo», com que a classe média de Lisboa tanto gostava de encher a boca até que alguém a reconhecesse globetrotter, portadora de cartão de crédito e representante dessa nova burguesia do resort de quatro estrelas e da máquina fotográfica digital. Porque ser de todo o lado, percebi-o eu assim que extravasei os limites da terra-mãe, não podia significar outra coisa senão que não se era de lado nenhum – e não ser de lado nenhum, não ter um lugar, um canto de mundo a que regressar, parecera-me sempre a mais triste de todas as condições. Para ser sincero, e apesar das já quase duas décadas que levava de exílio, eu continuava a voltar à terra como se realmente pudesse acordar ao contrário, contorcendo-me e espreguiçando-me e depois fechando-me em concha, até, enfim, adormecer. E, se de alguém ainda conseguia desdenhar com algum método, assim despertando da letargia que nos últimos anos me deixara impávido perante cada vez mais coisas, perante a dor e o próprio prazer, era daqueles que viviam longe há dez ou vinte ou trinta ou mesmo quarenta anos e,
A Génese de um Povo
A refeição chegou muito tempo depois, fumegante, num alguidar de barro de cujo interior provinham diferentes odores a infância e a flores. A sua chegada, a sala inteira pareceu aquecer-se. Como em criança, José Artur pegou numa fatia do pão doce cortado à sua frente e colocou-a no fundo do prato, derramando sobre ela sucessivas conchas do caldo em que a carne mergulhava. Depois ergueu gravemente um dos pedaços dessa carne e passou-o para o prato também.
Levou o garfo à boca e fechou os olhos, a manteiga e o cravo-da-índia e o toucinho de fumo diluindo-se e recombinando-se numa afluência de sabores que se metamorfoseava. Ganhavam, perdiam e recuperavam cambiantes, à medida que entravam em acção novos ingredientes ainda, o vinho e a pimenta da Jamaica e a cebola e a banha de porco e de novo a carne, magnífica, derretendo-se-lhe na boca e fundindo-se com ela, como se ele tivesse, finalmente, atingido terra firme.
Comeu até ao fim, numa voragem antiga, e depois pegou nos últimos pedacinhos do pão doce e pôs-se a ensopar o resto do molho, comendo-os também.
«Massa sovada», lembrou-se. «Massa sovada!» Sabia-lhe a terramotos e a redenção.
Chegou-se para trás.