Jogar Ă Bola na Rua
– É triste, sabes? As crianças, hoje em dia, mesmo as mais dadas a jogos de computador e sei lá mais o quĂŞ, alimentam-se melhor, fazem mais exercĂcio, tĂŞm fĂsicos mais equilibrados. Para alĂ©m de tudo, sabem fazer uma triangulação, percebem com toda a facilidade como se joga em quatro-quatro-dois e em quatro-trĂŞs-trĂŞs, acorrem a um pontapĂ© de canto e cumprem a coreografia toda, dançando na grande área como os profissionais. SĂł que, depois, nĂŁo tĂŞm intimidade com a bola. NĂŁo conhecem as suas manias, os movimentos mais imprevistos do seu comportamento, os seus amuos. E sĂł os conheceriam se jogassem Ă bola na rua. Se jogassem Ă bola seis ou sete ou oito horas por dia, como nĂłs chegávamos a jogar. Se fossem ao dentista arrancar um dente e, mesmo assim, precisassem de levar uma bola debaixo do braço, para ocupar os tempos mortos.
Textos sobre Tempo de Joel Neto
5 resultadosA GĂ©nese de um Povo
A refeição chegou muito tempo depois, fumegante, num alguidar de barro de cujo interior provinham diferentes odores a infância e a flores. A sua chegada, a sala inteira pareceu aquecer-se. Como em criança, José Artur pegou numa fatia do pão doce cortado à sua frente e colocou-a no fundo do prato, derramando sobre ela sucessivas conchas do caldo em que a carne mergulhava. Depois ergueu gravemente um dos pedaços dessa carne e passou-o para o prato também.
Levou o garfo Ă boca e fechou os olhos, a manteiga e o cravo-da-Ăndia e o toucinho de fumo diluindo-se e recombinando-se numa afluĂŞncia de sabores que se metamorfoseava. Ganhavam, perdiam e recuperavam cambiantes, Ă medida que entravam em acção novos ingredientes ainda, o vinho e a pimenta da Jamaica e a cebola e a banha de porco e de novo a carne, magnĂfica, derretendo-se-lhe na boca e fundindo-se com ela, como se ele tivesse, finalmente, atingido terra firme.
Comeu até ao fim, numa voragem antiga, e depois pegou nos últimos pedacinhos do pão doce e pôs-se a ensopar o resto do molho, comendo-os também.
«Massa sovada», lembrou-se. «Massa sovada!» Sabia-lhe a terramotos e a redenção.
Chegou-se para trás.
A Mulher por quem Esperara tantos Anos
Alguma coisa dentro dele voltou a si. Foi como se, de repente, estivessem efectivamente ali os dois. E, reacendendo a luz, encostou os lábios aos dela e sentiu, enfim, o calor que deles se emitia, e o sabor da sua boca, e o seu cheiro, e teve consciência de que aquela que se deitava na cama consigo não era apenas uma mulher bela, mas uma mulher, a mulher por quem esperara tantos anos.
Tiraram ambos o que lhes restava de roupa, lançando-a ao chĂŁo, e tocaram-se suavemente. Havia uma admiração entre eles, como se se descobrissem, e todavia era tambĂ©m tal qual se conhecessem de há muito, as superfĂcies mais sadias como as primeiras rugosidades dos seus corpos.
Tacteavam-se devagar, atentos às luzes e às sombras de cada recanto que esquadrinhavam, e ao fim de alguns momentos beijavam-se de novo, ele abraçando-a na sua totalidade, açambarcando-a, e ela sorrindo por entre o vento da noite, a chuva e os terramotos sorrindo com ela, e a humidade salgada dos seus peitos, e o mar que se atirava furioso contra aquela terra, e o primeiro suor do seu pescoço.
A partir daĂ, o mundo desapareceu. E havia medo e alegria,
O Lugar Certo
O tempo mudava de um momento para o outro, juntando, no curto espaço de vinte e quatro horas, a Primavera e o Outono, o Verão e até Inverno. Mas José Artur sentia-se vivo como um lobo das estepes libertado. Tinha a tensão alta dos heróis românticos e, em muitas circunstâncias, dava por si a citar Thoreau:
“Fui para os bosques viver de livre vontade. Vara sugar todo o tutano da vida, para aniquilar tudo o que não era vida e para, quando morrer, não descobrir que não vivi.”
Lamentava que Darwin ou Twain nĂŁo tivessem encontrado naquelas ilhas o mesmo que ele encontrava agora, mas percebeu que, no sĂ©culo dezanove, ainda restavam outros paraĂsos no planeta. E, de qualquer modo, havia Chateaubriand, Raul BrandĂŁo, atĂ© Melville, impressionado com a valentia dos marinheiros das ilhas a leste de Nantucket. NĂŁo, ele nĂŁo estava louco. Havia uma sabedoria naquilo — havia ecos e refracções, como se algo de mais profundo se insinuasse. Tinha a certeza de que, se a terra tremesse agora, conseguiria senti-la.
Aquele era o seu lugar. Não havia por que sentir falta dos privilégios da cidade. Um homem que soubesse povoar-se tinha alimento para uma vida na fotografia de um labandeira,
A Sopa Azeda
A dita sopa azeda não se parecia com nada do que tivesse provado até àquele momento. Num ápice, desfilaram vários sabores vindos como que do próprio interior do tempo. E, quando ele se pôs a percorrê-los, sentiu que se sentavam em volta os seus antepassados, os pais e os avós e os avós destes, e os velhos da Terra Chã e da Terceira, e os açorianos dali até ao povoamento, e deste até ao próprio Génesis, quando na manhã do Sexto Dia o Senhor olhou sobre a sua obra e decidiu que estava, afinal, incompleta.