Textos sobre Três de Miguel Torga

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Textos de três de Miguel Torga. Leia este e outros textos de Miguel Torga em Poetris.

É Impossível que o Tempo Actual não Seja o Amanhecer doutra Era

É impossível que o tempo actual não seja o amanhecer doutra era, onde os homens signifiquem apenas um instinto às ordens da primeira solicitação. Tudo quanto era coerência, dignidade, hombridade, respeito humano, foi-se. Os dois ou três casos pessoais que conheço do século passado, levam-me a concluir que era uma gente naturalmente cheia de limitações, mas digna, direita, capaz de repetir no fim da vida a palavra com que se comprometera no início dela. Além disso heróica nas suas dores, sofrendo-as ao mesmo tempo com a tristeza do animal e a grandeza da pessoa. Agora é esta ferocidade que se vê, esta coragem que não dá para deixar abrir um panarício ou parir um filho sem anestesia, esta tartufice, que a gente chega a perguntar que diferença haverá entre uma humanidade que é daqui, dali, de acolá, conforme a brisa, e uma colónia de bichos que sentem a humidade ou o cheiro do alimento de certo lado, e não têm mais nenhuma hesitação nem mais nenhum entrave.

O Egoísmo dos Homens

Isto de saber que é nos enterros que melhor se manifesta o egoísmo dos homens, não é novo. Vem nos livros. Mas é conveniente experimentar. É sempre bom ir uma, duas, três, vinte vezes atrás de um caixão, e ver como a pouco e pouco o mar de gente se reduz e fica em nada. Como, de tantos amigos, chegam ao cemitério apenas três, e esses três, furiosos por não terem podido escapar-se.

O Cinismo dos Valores

Cada vez mais desesperado. Olho, olho, e só vejo negrura à minha volta. Fé? Evidentemente… Enquanto há vida, há esperança — lá diz o outro. Mas, francamente: fé em quê? Num mundo que almoça valores, janta valores, ceia valores, e os degrada cinicamente, sem qualquer estremecimento da consciência? Peçam-me tudo, menos que tape os olhos. Bem basta quando a terra mos cobrir! — Ah! mas a humanidade acaba por encontrar o seu verdadeiro caminho — dizem-me duas células ingénuas do entendimento. E eu respondo-lhes assim : Não, o homem não tem caminhos ideais e caminhos de ocasião. O homem tem os caminhos que anda. Ora este senhor, aqui há tempos, passou três séculos a correr atrás dum mito que se resumia em queimar, expulsar e perseguir uns outros homens, cujo pecado era este: saber filosofia, medicina, física, astronomia, religião, comércio — coisas que já nessa época eram dignas e respeitáveis.

A Gente pouco Sabe e pouco Pode

A gente pouco sabe e pouco pode. Conhece apenas duas regras de higiene (que o corpo se recusa a observar), três de moral (que o instinto se recusa a praticar), e uma ou duas de civilidade (que só a polícia muito limitadamente nos faz cumprir), e pode apenas o que pode um bicho solicitado por um tropismo fundamental.