Textos sobre Úteis de Michel de Montaigne

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Textos de úteis de Michel de Montaigne. Leia este e outros textos de Michel de Montaigne em Poetris.

Nao há Virtude sem Agitação Desordenada

Os choques e abalos que a nossa alma recebe pelas paixões corporais muito podem sobre ela; porém podem mais ainda as suas próprias, pelas quais está tão fortemente dominada que talvez possamos afirmar que não tem nenhuma outra velocidade e movimento que não os do sopro dos seus ventos, e que, sem a agitação destes, ela permaneceria sem acção, como um navio em pleno mar e que os ventos deixassem sem ajuda. E quem sustentasse isso, seguindo o partido dos peripatéticos, não nos causaria muito dano, pois é sabido que a maior parte das mais belas acções da alma procedem desse impulso das paixões e necessitam dele. A valentia, diz-se, não se pode cumprir sem a assistência da cólera.

Ajax sempre foi valente, mas nunca o foi tanto como na sua loucura (Cícero)

Nem investimos contra os maus e os inimigos com tanto vigor se não estivermos encolerizados; e pretende-se que o advogado inspire a cólera nos juízes para deles obter justiça. As paixões excitaram Temístocles, excitaram Demóstenes e impeliram os filósofos para trabalhos, vigílias e peregrinações; conduzem-nos à honra, à ciência, à saúde – fins úteis. E essa falta de vigor da alma para suportar o sofrimento e os desgostos serve para alimentar na consciência a penitência e o arrependimento,

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A Inépcia é Pior que a Falsidade

Toda a gente pode falar com verdade; mas falar com ordem, com prudência e capazmente, poucos o podem. Por isso, a falsidade que vem da ignorância não me ofende; a inépcia, sim. Quebrei várias negociações que me eram úteis, por causa da estupidez que punham nas discussões aqueles com quem negociava. Nem uma vez por ano me irrito com as faltas dos meus subordinados; mas, no que respeita à idiotice e teimosia das suas alegações, às desculpas e defesas asininas e brutas, andamos todos os dias às turras. Não entendem nem o que se lhes diz nem a razão das coisas e respondem na mesma; é de desesperar.
Só outra cabeça é capaz de impressionar fortemente a minha e acomodo-me melhor com os erros dos meus do que com a sua leviandade, impertinência e estupidez. Que façam menos, contanto que façam bem alguma coisa; vive-se na esperança de lhes excitar a vontade, mas de estúpidos não há que esperar nem que lucrar coisa que valha.

As Coisas Têm um Preço em Função da Nossa Opinião

Que a nossa opinião atribui um preço às coisas, vê-se por aquelas, em grande número, em que nos fixamos por estimarmos não a elas mas sim a nós; e não consideramos nem as suas qualidades nem as suas utilidades, mas somente o que nos custa a obtê-las, como se isso fosse uma parte da sua substância; e chamamos de valor não ao que elas trazem mas sim ao que lhes colocamos. Daqui depreendo que somos grandes administradores do nosso investimento. Ele vale tanto quanto pesa, justamente porque pesa. A nossa opinião nunca o deixa correr sem carga útil. A compra dá valor ao diamante, e a dificuldade à virtude, e a dor à devoção, e o amargor ao medicamento.
Houve um só que, para chegar à pobreza, atirou os seus escudos nesse mesmo mar que tantos outros esquadrinham por todos os lados para pescar riquezas. Epicuro diz que ser rico não é alívio e sim mudança de dificuldades. Na verdade, não é a penúria, é antes a abundância que produz a avareza.

O Saber como Ceptro ou como Folia

Amo e honro o saber, tanto como aqueles que o têm; dando-se-lhe o verdadeiro uso, é a mais nobre e poderosa aquisição dos homens. Mas aqueles, e são em número infinito, que nele alicerçam o seu valor e a sua fundamental capacidade, que abdicam da inteligência na memória, acolhidos à sombra alheia, e nada podem senão pelos livros – nesses aborreço-o eu, se ouso dizê-lo, um pouco mais do que a estupidez. Na minha terra e no meu tempo, a sabedoria melhora bastante as bolsas, raramente os espíritos. Se os encontra obtusos, pesa sobre eles e sufoca-os com a sua massa informe e indigesta; se lestos, logo os purifica, clarifica e subtiliza até o esgotamento. É coisa de qualidade quase indecisa; instrumento muito útil às almas bem formadas, pernicioso e daninho às outras; ou antes, coisa de preciosíssima utilidade que se não obtém barata; em certas mãos é um ceptro, noutras uma folia.

A Verdadeira Amizade

Na verdadeira amizade, em que sou experimentado, dou-me mais ao meu amigo que o puxo para mim. Não só prefiro fazer-lhe bem a que ele mo faça mas ainda que ele o faça a si próprio a que mo faça; faz-me ele, então, o maior bem possível quando a si o faz. E se a sua ausência lhe for quer prazenteira quer útil, torna-se-me ela bem mais agradável que a sua presença; e de resto não é propriamente ausência se há meios de comunicarmos um com o outro. Tirei outrora partido e proveito do nosso afastamento. Em nos separando, melhor e mais amplamente entrávamos em posse da vida: ele vivia, fruía e via para mim, e eu para ele, mais plenamente que se ele estivesse presente. Uma parte de cada um de nós permanecia desocupada quando estávamos juntos: fundíamo-nos num só. A separação espacial tornava mais rica a união das nossas vontades. A insaciável fome da presença física denuncia uma certa fraqueza na fruição mútua das almas.

Nos Extremos é que Está a Sabedoria

Pode-se dizer que, muito plausivelmente, há uma ignorância abecedária que precede o saber e uma outra, doutoral, que se lhe segue, ignorância esta que o saber produz e engendra da mesma maneira que desfaz e destrói aqueloutra. Dos espíritos simples, menos curiosos e menos instruídos, fazem-se bons cristãos, que, por reverência e obediência, com simplicidade, crêem e mantêm-se submissos às leis. É nos espíritos de vigor e capacidade médios que se engendram as opiniões erróneas, pois eles seguem a aparência das suas primeiras impressões e têm pretextos para interpretar como simpleza e estultícia o nosso apego aos antigos usos, considerando que nós aí não chegámos por via do estudo dessas matérias.
Os grandes espíritos, mais avisados e clarividentes, constituem um outro género de bons crentes: por meio de uma aturada e escrupulosa investigação, penetram nas Escrituras até atingir uma luz mais profunda e abstrusa, e entendem o misterioso e divino segredo da nossa política eclesiástica. Vemos, porém, alguns, com maravilhoso proveito e com consolidação da sua fé, chegarem, através do segundo, a este último nível, como o extremo limite da inteligência cristã, e rejubilar na sua vitória com refrigério, acções de graças, reformas dos costumes e grande modéstia. Não entendo nesta categoria situar aqueloutros que,

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Da Desigualdade que Existe Entre os Homens

Plutarco diz nalgum lugar que não observa entre um animal e outro distância tão grande como encontra entre um homem e outro. Está a falar do valor da alma e das faculdades interiores. Na verdade, observo tanta distância de Epaminondas, como o imagino, até alguém que conheço, quero dizer capaz de senso comum, que de bom grado eu iria além de Plutarco e diria que há mais distância entre tal e tal homem do que há entre tal homem e tal animal: Ah! Entre um homem e outro homem, quanta distância! (Terêncio), e que há tantos graus de espíritos quantas braças há daqui ao céu, e igualmente inumeráveis.
Mas, a propósito da avaliação dos homens, é espantoso que, excepto nós, todas as coisas sejam avaliadas tão-somente pelas suas próprias qualidades. Elogiamos um cavalo porque é vigoroso e ágil, e não pelos arreios; um galgo pela sua velocidade, não pela coleira; um pássaro pela envergadura e não pelas suas correias e sinetas. Por que da mesma forma não avaliamos um homem pelo que é propriamente seu? Ele tem um alto nível de vida, um belo palácio, tanto de crédito, tanto de renda: tudo isto está ao redor dele e não nele.

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