Textos sobre Opinião de Michel de Montaigne

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Textos de opinião de Michel de Montaigne. Leia este e outros textos de Michel de Montaigne em Poetris.

A Inconstância das Nossas Acções

Os que se exercitam a prescrutar as acções humanas, em coisa alguma se acham tão embaraçados como em conjugar umas com as outras e mostrá-las à mesma luz, pois comummente elas se contradizem entre si de modo tão estranho que parece impossível terem todas saído da mesma loja.
(…) Alguma razão parece haver no julgar um homem pelas mais comuns acções da sua vida, mas, atendendo à natural instabilidade dos nossos costumes e opiniões, amiúde se me tem afigurado que mesmo os bons autores erram ao obstinarem-se a conceberem-nos como um todo coerente e constante. Escolhem uma imagem global, segundo a qual classificam e interpretam todas as acções da personagem, e quando não as conseguem conformar a ela, atribuem-nas à dissimulação.
(…) O nosso procedimento habitual é seguir as inclinações do nosso desejo, para a esquerda, para a direita, para cima e para baixo, para onde quer que nos empurrem os ventos das circunstâncias. Não pensamos no que queremos senão no instante em que o queremos, e mudamos como o animal que adquire a cor do local onde o pousam. O que agora mesmo acabámos de projectar, em breve o viremos a alterar, e, pouco mais tarde, voltaremos sobre os nossos passos: tudo não é senão oscilação e inconstância.

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Somos Traídos pela Nossa Própria Percepção e Experiência

Vemos muito bem que as coisas não se alojam em nós com a sua forma e essência, e não penetram em nós pela sua própria força e autoridade; porque, se assim fosse, recebê-las-íamos do mesmo modo: o vinho seria o mesmo na boca do doente e na boca do homem são. Quem tem os dedos gretados, ou que os tem entorpecidos, encontraria na lança ou na espada que maneja uma rigidez semelhante à que o outro encontra. Os objetos externos rendem-se então à nossa mercê; alojam-se em nós como nos apraz. Ora, se da nossa parte recebêssemos alguma coisa sem alteração, se as faculdades humanas fossem bastante capazes e firmes para apreender a verdade pelos nossos próprios meios, esses meios sendo comuns a todos os homens, essa verdade se transmitiria de mão em mão de um para outro. E pelo menos se encontraria uma coisa no mundo, entre tantas que há, que seria acreditada pelos homens por um consenso universal. Mas o facto de não se ver proposição alguma que não seja debatida e controversa entre nós, ou que não o possa ser, mostra bem que o nosso julgamento natural não apreende muito claramente aquilo que apreende; pois o meu julgamento não pode fazer com que isso seja aceite pelo julgamento do meu companheiro,

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Somos para Nós mesmos Objecto de Descontentamento

Se os outros se observassem a si próprios atentamente como eu achar-se-iam, tal como eu, cheios de inanidade e tolice. Não posso livrar-me delas sem me livrar de mim mesmo. Estamos todos impregnados delas, mas os que têm consciência de tal saem-se, tanto quanto eu sei, um pouco melhor.
A ideia e a prática comuns de olhar para outros lados que não para nós mesmos de muito nos tem valido! Somos para nós mesmos objecto de descontentamento: em nós não vemos senão miséria e vaidade. Para não nos desanimar, a natureza muito a propósito nos orientou a visão para o exterior. Avançamos facilmente ao sabor da corrente, mas inverter a nossa marcha contra a corrente, rumo a nós próprios, é um penoso movimento: assim o mar se turva e remoinha quando em refluxo é impelido contra si mesmo.
Cada qual diz: «Olhai os movimentos do céu, olhai para o público, olhai para a querela deste homem, para o puso daquele, para o testamento daqueloutro; em suma, olhai sempre para cima ou para baixo, ou para o lado, ou para a frente, ou para trás de vós.»
O mandamento que na antiguidade nos preceituava aquele deus de Delfos ia contra esta opinião comum: «Olhai para dentro de vós,

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Poupar a Vontade

Em comparação com o comum dos homens, poucas coisas me atingem, ou, dizendo melhor, me prendem; pois é razoável que elas atinjam, contanto que não nos possuam. Tenho grande zelo em aumentar pelo estudo e pela reflexão esse privilégio de insensibilidade, que em mim é naturalmente muito saliente. Desposo – e consequentemente me apaixono por – poucas coisas. A minha visão é clara, mas detenho-a em poucos objectos; a sensibilidade, delicada e maleável. Mas a apreensão e aplicação, tenho-a dura e surda: dificilmente me envolvo. Tanto quanto posso, emprego-me todo em mim; porém mesmo nesse objecto eu refrearia e suspenderia de bom grado a minha afeição para que ela não se entregasse por inteiro, pois é um objecto que possuo por mercê de outrém e sobre o qual a fortuna tem mais direito do que eu. De maneira que até a saúde, que tanto estimo, ser-me-ia preciso não a desejar e não me dedicar a ela tão desenfreadamente a ponto de achar insuportáveis as doenças. Devemos moderar-nos entre o ódio e o amor à voluptuosidade; e Platão receita um caminho mediano de vida entre ambos.
Mas às paixões que me distraem de mim e me prendem alhures, a essas certamente me oponho com todas as minhas forças.

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A Vantagem de Ter Pouca Memória

Não há outro homem a quem aventurar-se a falar de memória assente tão mal. Pois praticamente não reconheço em mim vestígio dela, e não creio que haja no mundo uma outra tão prodigiosa em insuficiência. Tenho banais e comuns todas as minhas outras qualidades. Mas nesta creio ser singular e muito raro, e digno de por ela ganhar nome e fama.
(…) Em certa medida, consolo-me. Em primeiro lugar porque esse é um mal pelo qual encontrei principalmente o meio de corrigir um mal pior que poderia facilmente ter surgido em mim, ou seja, a ambição, pois é uma falta (a falta de memória) inadmissível para quem se envolve nos negócios do mundo; e porque, como mostram vários exemplos semelhantes do andamento da natureza, esta de bom grado fortaleceu em mim outras faculdades na medida em que aquela se enfraqueceu, e facilmente eu iria deitando e enlaguescendo o meu espírito e o meu discernimento sobre os rastros de outrem, como faz o mundo, sem exercer as suas próprias forças, se as ideias e opiniões alheias estivessem presentes em mim pelo benefício da memória.
E porque as minhas falas são mais curtas, pois o armazém da memória costuma ser mais bem provido de matéria do que o da invenção;

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A Virtude Pura não Existe nos Dias de Hoje

Numa época tão doente como esta, quem se ufana de aplicar ao serviço da sociedade uma virtude genuína e pura, ou não sabe o que ela é, já que as opiniões se corrompem com os costumes (de facto, ouvi-os retratarem-na, ouvi a maior parte glorificar-se do seu comportamento e formular as suas regras: em vez de retratarem a virtude, retratam a pura injustiça e o vício, e apresentam-na assim falsificada para educação dos príncipes), ou, se o sabe, ufana-se erradamente e, diga o que disser, faz mil coisas que a sua consciência reprova.
(…) Em tal aperto, a mais honrosa marca de bondade consiste em reconhecer o erro próprio e o alheio, empregar todas as forças a resistir e a obstar à inclinação para o mal, seguir contra a corrente dessa tendência, esperar e desejar que as coisas melhorem.

Aprender a Morrer para Saber Viver

Diz Cícero que filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte. Isso porque de certa forma o estudo e a contemplação retiram a nossa alma para fora de nós e ocupam-na longe do corpo, o que é um certo aprendizado e representação da morte; ou então porque toda a sabedoria e discernimento do mundo se resolvem por fim no ponto de nos ensinarem a não termos medo de morrer. Na verdade, ou a razão se abstém ou ela deve visar apenas o nosso contentamento, e todo o seu trabalho deve ter como objectivo, em suma, fazer-nos viver bem e ao nosso gosto, como dizem as Santas Escrituras. Todas as opiniões do mundo coincidem em que o prazer é a nossa meta, embora adoptem meios diferentes para isso; de outra forma as rejeitaríamos logo de início, pois quem escutaria alguém que estabelecesse como fim o nosso penar e descontentamento?

A Hipocrisia do Ser

Para que servem esses píncaros elevados da filosofia, em cima dos quais nenhum ser humano se pode colocar, e essas regras que excedem a nossa prática e as nossas forças? Vejo frequentes vezes proporem-nos modelos de vida que nem quem os propõe nem os seus auditores têm alguma esperança de seguir ou, o que é pior, desejo de o fazer. Da mesma folha de papel onde acabou de escrever uma sentença de condenação de um adultério, o juiz rasga um pedaço para enviar um bilhetinho amoroso à mulher de um colega. Aquela com quem acabais de ilicitamente dar uma cambalhota, pouco depois e na vossa própria presença, bradará contra uma similar transgressão de uma sua amiga com mais severidade que o faria Pórcia.
E há quem condene homens à morte por crimes que nem sequer considera transgressões. Quando jovem, vi um gentil-homem apresentar ao povo, com uma mão, versos de notável beleza e licenciosidade, e com outra, a mais belicosa reforma teológica de que o mundo, de há muito àquela parte, teve notícia.
Assim vão os homens. Deixa-se que as leis e os preceitos sigam o seu caminho: nós tomamos outro, não só por desregramento de costumes, mas também frequentemente por termos opiniões e juízos que lhes são contrários.

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Contente Está Quem Assim se Julga de si Mesmo

A abastança e a indigência dependem da opinião de cada um; e a riqueza não mais do que a glória, do que a saúde têm tanto de beleza e de prazer quanto lhes atribui quem as possui. Cada qual está bem ou mal conforme assim se achar. Contente está não quem assim julgamos, mas quem assim julga de si mesmo. E apenas com isso a crença assume essência e verdade.
A fortuna não nos faz nem bem nem mal: somente nos oferece a matéria e a semente de ambos, que a nossa alma, mais poderosa que ela, transforma e aplica como lhe apraz – causa única e senhora da sua condição feliz ou infeliz.
Os acréscimos externos tomam a cor e o sabor da constituição interna, como as roupas que nos aquecem não com o calor delas e sim com o nosso, que a elas cabe proteger e alimentar; quem abrigasse um corpo frio prestaria o mesmo serviço para a frialdade: assim se conservam a neve e o gelo.
É certo que, exactamente como o estudo serve de tormento para um preguiçoso, a abstinência do vinho para um alcoólatra, a frugalidade é suplício para o luxorioso e o exercício incomoda um homem delicado e ocioso;

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As Influências no Estado de Espírito

Agora estou disposto a fazer tudo, agora a nada fazer; o que me é um prazer neste momento em alguma outra vez me será um esforço. Acontecem em mim mil agitações desarrazoadas e acidentais. Ou o humor melancólico me domina, ou o colérico; e, com a sua autoridade pessoal, neste momento a tristeza predomina em mim, neste momento a alegria. Quando pego em livros, terei captado em determinada passagem qualidades excelentes e que terão tocado a minha alma; quando uma outra vez volto a deparar com ela, por mais que a vire e revire, por mais que a dobre e apalpe, é para mim uma massa desconhecida e informe.
Mesmo nos meus escritos nem sempre reencontro o sentido do meu pensamento anterior: não sei o que quis dizer, e amiúde me esfalfo corrigindo e dando-lhe um novo sentido, por haver perdido o primeiro, que valia mais. Não faço mais que ir e vir: o meu julgamento nem sempre caminha para a frente; ele flutua, vagueia, Como um barquinho frágil surpreendido no vasto mar por uma tempestade violenta (Catulo).
Muitas vezes (como habitualmente me advém fazer), tendo tomado para defender, por exercício e por diversão, uma opinião contrária à minha,

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As Coisas Têm um Preço em Função da Nossa Opinião

Que a nossa opinião atribui um preço às coisas, vê-se por aquelas, em grande número, em que nos fixamos por estimarmos não a elas mas sim a nós; e não consideramos nem as suas qualidades nem as suas utilidades, mas somente o que nos custa a obtê-las, como se isso fosse uma parte da sua substância; e chamamos de valor não ao que elas trazem mas sim ao que lhes colocamos. Daqui depreendo que somos grandes administradores do nosso investimento. Ele vale tanto quanto pesa, justamente porque pesa. A nossa opinião nunca o deixa correr sem carga útil. A compra dá valor ao diamante, e a dificuldade à virtude, e a dor à devoção, e o amargor ao medicamento.
Houve um só que, para chegar à pobreza, atirou os seus escudos nesse mesmo mar que tantos outros esquadrinham por todos os lados para pescar riquezas. Epicuro diz que ser rico não é alívio e sim mudança de dificuldades. Na verdade, não é a penúria, é antes a abundância que produz a avareza.

Nos Extremos é que Está a Sabedoria

Pode-se dizer que, muito plausivelmente, há uma ignorância abecedária que precede o saber e uma outra, doutoral, que se lhe segue, ignorância esta que o saber produz e engendra da mesma maneira que desfaz e destrói aqueloutra. Dos espíritos simples, menos curiosos e menos instruídos, fazem-se bons cristãos, que, por reverência e obediência, com simplicidade, crêem e mantêm-se submissos às leis. É nos espíritos de vigor e capacidade médios que se engendram as opiniões erróneas, pois eles seguem a aparência das suas primeiras impressões e têm pretextos para interpretar como simpleza e estultícia o nosso apego aos antigos usos, considerando que nós aí não chegámos por via do estudo dessas matérias.
Os grandes espíritos, mais avisados e clarividentes, constituem um outro género de bons crentes: por meio de uma aturada e escrupulosa investigação, penetram nas Escrituras até atingir uma luz mais profunda e abstrusa, e entendem o misterioso e divino segredo da nossa política eclesiástica. Vemos, porém, alguns, com maravilhoso proveito e com consolidação da sua fé, chegarem, através do segundo, a este último nível, como o extremo limite da inteligência cristã, e rejubilar na sua vitória com refrigério, acções de graças, reformas dos costumes e grande modéstia. Não entendo nesta categoria situar aqueloutros que,

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Não é para Alarde que Devemos Desempenhar o Nosso Papel

Quem só é homem de bem porque os outros o ficarão a saber e porque o estimarão mais depois de o ficarem a saber, quem só quer agir bem na condição da sua virtude chegar ao conhecimento dos homens não é homem de quem possamos obter grandes serviços.
(…) Não é para alarde que a nossa alma deve desempenhar o seu papel; é dentro de nós, no íntimo, aonde outros olhos não chegam excepto os nossos: ali ela nos protege do temor da morte, das dores e mesmo da desonra; tranquiliza-nos contra a perda dos nossos filhos, dos nossos amigos e das nossas fortunas, e, quando a ocasião se apresenta, também nos conduz para os acasos da guerra. Não por algum proveito, mas pela honra da própria virtude (Cícero). Esse proveito é muito maior e muito mais digno de ser desejado e esperado do que as honras e a glória, que são apenas um julgamento favorável que fazem de nós.
É preciso seleccionar de uma nação inteira uma dúzia de homens para julgar sobre uma jeira de terra; e entregamos o julgamento das nossas inclinações e das nossas acções – a matéria mais difícil e mais importante que existe –

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Nada nos Satisfaz

Se ocasionalmente nos ocupássemos em nos exa­minar, e o tempo que gastamos para controlar os outros e para saber das coisas que estão fora de nós o empregás­semos em nos sondar a nós mesmos, facilmente sentiríamos o quanto todo esse nosso composto é feito de peças frágeis e falhas. Acaso não é uma prova singular de imperfeição não conseguirmos assentar o nosso contentamento em coi­sa alguma, e que, mesmo por desejo e imaginação, esteja fora do nosso poder escolher o que nos é necessário? Dis­so dá bom testemunho a grande discussão que sempre houve entre os filósofos para descobrir qual é o soberano bem do homem, a qual ainda perdura e perdurará eterna­mente, sem solução e sem acordo: Enquanto nos escapa, o objecto do nosso desejo sempre nos parece preferível a qualquer outra coisa; vindo a desfrutá-lo, um outro desejo nasce em nós, e a nossa sede é sempre a mesma. (Lucrécio).
Não importa o que venhamos a conhecer e des­frutar, sentimos que não nos satisfaz, e perseguimos cobi­çosos as coisas por vir e desconhecidas, pois as presentes não nos saciam; em minha opinião, não que elas não te­nham o bastante com que nos saciar, mas é que nos apo­deramos delas com mão doentia e desregrada: Pois ele viu que os mortais têm à sua disposição praticamente tudo o que é necessário para a vida;

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