Textos sobre Verdade de Rafael Chirbes

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Textos de verdade de Rafael Chirbes. Leia este e outros textos de Rafael Chirbes em Poetris.

A Incapacidade de Amar Alguém

Para falar com franqueza, não considero grave a incapacidade de amar alguém. O que significa amar? Na sua maioria, as pessoas coabitam sem necessidade de um sentimento que desconhecem até ao momento em que o leem num romance ou o veem num filme. O facto de, à partida, não sabermos o que é, indica talvez que se trata de algo que não existe dentro de nós, que nos é inculcado, ou que importamos. Se não estou em erro, era um velho filósofo francês que dizia que, quando um homem exprime o muito que ama a senhora marquesa, o muito que aprecia a sua inteligência — como é harmoniosa nos seus movimentos, que ideias tão extraordinárias tem, que sensibilidade tão requintada exibe —, aquilo que realmente quer dizer é que está doido por foder com ela. Julgo que há aí alguma verdade. Confundimos empatia ou compaixão com desejo, julgamos querer acarinhar, proteger, quando na verdade queremos penetrar, violar.

Os Momentos Decisivos

Tendemos a pensar que a verdade das pessoas emerge nos momentos decisivos, no fio da navalha, quando se testam os limites. A hora dos santos e dos heróis. Ora bem, nesses momentos o comportamento humano não costuma ser nem exemplar nem animador. A chusma que se acotovela para chegar primeiro à bilheteira da sala de concertos; os espectadores que se atropelam ao fugir de um teatro em chamas, espezinhando os mais fracos sem se aperceberem deles, a criança, as cansadas carnes do ancião, calcadas pelos tacões das jovens mulheres que se aperaltaram para a saída noturna; os honrados cidadãos, incluindo as senhoras — de boas famílias, ou de famílias humildes, nisso não há distinções —, que golpeiam furiosamente com os remos as cabeças dos náufragos que tentam subir para o bote salva-vidas superlotado. Salve-se quem puder.

O Amor na Lama

– Esteban, o homem nĂŁo poderia fazer grandes obras sem trabalhos pequenos; na maqueta do carpinteiro está todo o edifĂ­cio do arquiteto, nĂŁo há profissões grandes e pequenas: alegro-me que tenhas decidido ficar connosco na carpintaria, mas convĂ©m que te lembres disso. NĂŁo te esqueças de que Deus tambĂ©m se senta numa cadeira e come a uma mesa e dorme numa cama. Como qualquer um. Pode prescindir dos retábulos, das estátuas e dos livros que lhe dedicam, incluindo a BĂ­blia, mas nĂŁo da cadeira, da mesa e da cama. — O meu tio esforçava-se muito. Queria que eu me sentisse bem na profissĂŁo. Que começasse a gostar dela. Acreditava que eu vivia como um fracasso a decisĂŁo de ter abandonado a Escola de Belas–Artes. IntuĂ­a certamente que eu precisava de desenvolver a minha autoestima. Mas tudo isso me parecia mera retĂłrica — e era-o —, a verdade Ă© que por essa altura já tinha começado a sair com Leonor e era ela quem eu amava, aprendia a gostar de mim atravĂ©s dela. Descobria o meu corpo em cada palmo do corpo dela, e o meu corpo ganhava valor porque lhe pertencia, era o seu complemento: acreditava que partilhávamos dois corpos que jamais poderiam separar-se e viver cada um por si.

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Um Ser Humano nĂŁo Ă© Grande Coisa

NĂŁo tenhamos ilusões: um ser humano nĂŁo Ă© grande coisa. De facto, há tantos que os governos nĂŁo sabem o que fazer com eles. Seis mil milhões de humanos Ă  face da Terra e apenas seis ou sete mil tigres de Bengala – ora digam lá qual das espĂ©cies necessita de mais proteção, de cuidados especiais. Sim, escolham vocĂŞs mesmos. Um negro, um chinĂŞs, um escocĂŞs, ou um belo tigre que cai vĂ­tima de um caçador. Um tigre, com a sua pelagem listrada de cores incomparáveis e os seus olhos coruscantes, Ă© bastante mais belo do que um velhote cheio de varizes como eu. Que diferença de porte. Comparem a agilidade de um com a inĂ©pcia do outro. Vejam como se movem. Metam-nos em jaulas do jardim zoolĂłgico, lado a lado. Diante da jaula do velho concentram-se as crianças que riem ao vĂŞ-lo catar-se e pĂ´r-se de cĂłcoras para defecar; diante da do tigre, arregalam os olhos de admiração. Acabou essa ilusĂŁo segundo a qual o homem Ă© o centro do universo. É verdade que no animal humano distinguimos os gestos, os rostos e as vozes, o que estimula a nossa empatia, mas tambĂ©m distinguimos caracterĂ­sticas particulares, que associamos a sentimentos,

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Um Pedaço do Céu

– É verdade, Liliana. De momento, nesta tarde tĂŁo hĂşmida e nublada, com este fio que se nos mete pelos ossos adentro, Deus Ă© um cafĂ© bem quente e aromático, feito com grĂŁos acabados de moer; no verĂŁo, procura Deus num belo gelado, num desses gelados tĂŁo saborosos, de torrĂŁo, de chocolate; ou de papaia e manga, porque agora os espanhĂłis tambĂ©m já fazem gelados de manga, e de goiaba e papaia, e um dia destes atĂ© gelados de dĂşrio há de haver, embora os espanhĂłis nĂŁo gostem do cheiro do dĂşrio, tĂŁo forte, parece que lhes mete nojo. Eu tambĂ©m nĂŁo gosto do cheiro, mas o fruto Ă© uma delĂ­cia. Pensa que aĂ­ mesmo, na geladaria da praça, está um pedaço do cĂ©u com que sonhámos, ou do cĂ©u que podemos alcançar e que ainda nĂŁo nos tiraram. Senta-te com os teus filhos numa esplanada, num fim de tarde de agosto, come um gelado de manga bem cremoso, e verás que Ă© aĂ­ que está o Deus do verĂŁo, assim como está no tintico o Deus do inverno. Quando os espanhĂłis chegaram para nos conquistar, nĂłs sabĂ­amos que nĂŁo existe um sĂł deus, mas muitos deuses, há um deus para cada coisa,

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