Textos sobre Verdade de Rafael Chirbes

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Textos de verdade de Rafael Chirbes. Leia este e outros textos de Rafael Chirbes em Poetris.

Os Momentos Decisivos

Tendemos a pensar que a verdade das pessoas emerge nos momentos decisivos, no fio da navalha, quando se testam os limites. A hora dos santos e dos heróis. Ora bem, nesses momentos o comportamento humano não costuma ser nem exemplar nem animador. A chusma que se acotovela para chegar primeiro à bilheteira da sala de concertos; os espectadores que se atropelam ao fugir de um teatro em chamas, espezinhando os mais fracos sem se aperceberem deles, a criança, as cansadas carnes do ancião, calcadas pelos tacões das jovens mulheres que se aperaltaram para a saída noturna; os honrados cidadãos, incluindo as senhoras — de boas famílias, ou de famílias humildes, nisso não há distinções —, que golpeiam furiosamente com os remos as cabeças dos náufragos que tentam subir para o bote salva-vidas superlotado. Salve-se quem puder.

O Amor na Lama

– Esteban, o homem nĂŁo poderia fazer grandes obras sem trabalhos pequenos; na maqueta do carpinteiro está todo o edifĂ­cio do arquiteto, nĂŁo há profissões grandes e pequenas: alegro-me que tenhas decidido ficar connosco na carpintaria, mas convĂ©m que te lembres disso. NĂŁo te esqueças de que Deus tambĂ©m se senta numa cadeira e come a uma mesa e dorme numa cama. Como qualquer um. Pode prescindir dos retábulos, das estátuas e dos livros que lhe dedicam, incluindo a BĂ­blia, mas nĂŁo da cadeira, da mesa e da cama. — O meu tio esforçava-se muito. Queria que eu me sentisse bem na profissĂŁo. Que começasse a gostar dela. Acreditava que eu vivia como um fracasso a decisĂŁo de ter abandonado a Escola de Belas–Artes. IntuĂ­a certamente que eu precisava de desenvolver a minha autoestima. Mas tudo isso me parecia mera retĂłrica — e era-o —, a verdade Ă© que por essa altura já tinha começado a sair com Leonor e era ela quem eu amava, aprendia a gostar de mim atravĂ©s dela. Descobria o meu corpo em cada palmo do corpo dela, e o meu corpo ganhava valor porque lhe pertencia, era o seu complemento: acreditava que partilhávamos dois corpos que jamais poderiam separar-se e viver cada um por si.

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Um Ser Humano nĂŁo Ă© Grande Coisa

NĂŁo tenhamos ilusões: um ser humano nĂŁo Ă© grande coisa. De facto, há tantos que os governos nĂŁo sabem o que fazer com eles. Seis mil milhões de humanos Ă  face da Terra e apenas seis ou sete mil tigres de Bengala – ora digam lá qual das espĂ©cies necessita de mais proteção, de cuidados especiais. Sim, escolham vocĂŞs mesmos. Um negro, um chinĂŞs, um escocĂŞs, ou um belo tigre que cai vĂ­tima de um caçador. Um tigre, com a sua pelagem listrada de cores incomparáveis e os seus olhos coruscantes, Ă© bastante mais belo do que um velhote cheio de varizes como eu. Que diferença de porte. Comparem a agilidade de um com a inĂ©pcia do outro. Vejam como se movem. Metam-nos em jaulas do jardim zoolĂłgico, lado a lado. Diante da jaula do velho concentram-se as crianças que riem ao vĂŞ-lo catar-se e pĂ´r-se de cĂłcoras para defecar; diante da do tigre, arregalam os olhos de admiração. Acabou essa ilusĂŁo segundo a qual o homem Ă© o centro do universo. É verdade que no animal humano distinguimos os gestos, os rostos e as vozes, o que estimula a nossa empatia, mas tambĂ©m distinguimos caracterĂ­sticas particulares, que associamos a sentimentos,

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Um Pedaço do Céu

– É verdade, Liliana. De momento, nesta tarde tĂŁo hĂşmida e nublada, com este fio que se nos mete pelos ossos adentro, Deus Ă© um cafĂ© bem quente e aromático, feito com grĂŁos acabados de moer; no verĂŁo, procura Deus num belo gelado, num desses gelados tĂŁo saborosos, de torrĂŁo, de chocolate; ou de papaia e manga, porque agora os espanhĂłis tambĂ©m já fazem gelados de manga, e de goiaba e papaia, e um dia destes atĂ© gelados de dĂşrio há de haver, embora os espanhĂłis nĂŁo gostem do cheiro do dĂşrio, tĂŁo forte, parece que lhes mete nojo. Eu tambĂ©m nĂŁo gosto do cheiro, mas o fruto Ă© uma delĂ­cia. Pensa que aĂ­ mesmo, na geladaria da praça, está um pedaço do cĂ©u com que sonhámos, ou do cĂ©u que podemos alcançar e que ainda nĂŁo nos tiraram. Senta-te com os teus filhos numa esplanada, num fim de tarde de agosto, come um gelado de manga bem cremoso, e verás que Ă© aĂ­ que está o Deus do verĂŁo, assim como está no tintico o Deus do inverno. Quando os espanhĂłis chegaram para nos conquistar, nĂłs sabĂ­amos que nĂŁo existe um sĂł deus, mas muitos deuses, há um deus para cada coisa,

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A Incapacidade de Amar Alguém

Para falar com franqueza, não considero grave a incapacidade de amar alguém. O que significa amar? Na sua maioria, as pessoas coabitam sem necessidade de um sentimento que desconhecem até ao momento em que o leem num romance ou o veem num filme. O facto de, à partida, não sabermos o que é, indica talvez que se trata de algo que não existe dentro de nós, que nos é inculcado, ou que importamos. Se não estou em erro, era um velho filósofo francês que dizia que, quando um homem exprime o muito que ama a senhora marquesa, o muito que aprecia a sua inteligência — como é harmoniosa nos seus movimentos, que ideias tão extraordinárias tem, que sensibilidade tão requintada exibe —, aquilo que realmente quer dizer é que está doido por foder com ela. Julgo que há aí alguma verdade. Confundimos empatia ou compaixão com desejo, julgamos querer acarinhar, proteger, quando na verdade queremos penetrar, violar.