Álvaro
… Diabo de homem, este Álvaro… Agora chama-se Álvaro de Silva… Vive em Nova Iorque… Passou quase toda a vida na selva nova-iorquina… Imagino-o a comer laranjas a horas insólitas, queimando com o fósforo o papel dos cigarros, fazendo perguntas vexatórias a toda a gente… Foi sempre um mestre desordenado, possuidor de uma brilhante inteligência, inteligência inquiridora que parecia não o levar a pparte nenhuma, excepto a Nova Iorque. Era em 1925…
Entre as violetas que se lhe escapavam da mão quando corria para as entregar a uma transeunte desconhecida, com a qual queria logo ir deitar-se, sem saber como ela se chamava nem donde era, e as suas intermináveis leituras de Joyce, revelou-me a mim e a muitos outros insuspeitadas opiniões, pontos de vist-a de grande cidadão que vive dentro da urbe, na sua cova, e sai a explorar a música, a pintura, os livros, a dança… Sempre a comer laranjas, a descascar maçãs, insuportável dietético, assombrosamente intrometido em tudo, víamos nele, por fim, o sonhado antiprovinciano que todos nós, os provincianos, tínhamos querido ser, sem as etiquetas coladas nas malas, antes circulando dentro de si próprio, com uma mistura de países e concertos, de cafés ao alvorecer,
Passagens sobre Areia
189 resultadosA Nossa Vida é Estilhaçada pelo Pormenor
Vivemos mesquinhamente, quais formigas, ainda que a fábula nos relate que há muito tempo atrás fomos transformados em homens; como os pigmeus lutamos com gruas; e é erro sobre erro, remendo sobre remendo, e a nossa melhor virtude decorre de uma miséria supérflua e evitável. A nossa vida é estilhaçada pelo pormenor.
Um homem honesto dificilmente precisa de contar para além dos seus dez dedos das mãos, acrescentando, em caso extremo, os seus dez dedos dos pés, e o resto que se amontoe. Simplicidade, simplicidade, simplicidade! Digo: ocupai-vos de dois ou três afazeres, e não de cem ou mil; contai meia dúzia em vez de um milhão e tomai nota das receitas e despesas na ponta do polegar. A meio do agitado mar da vida civilizada, tantas são as nuvens, as tempestades, as areias movediças, tantos são os mil e um imprevistos a ser levados em conta, que para não se afundar, para não ir a pique antes de chegar ao porto, um homem tem de ser um grande calculista para lograr êxito.
Simplificar, simplificar, simplificar. Em vez de três refeições por dia, se preciso for, comer apenas uma; em vez de cem pratos, cinco; e reduzir proporcionalmente as outras coisas.
As Causas
Todas as gerações e os poentes.
Os dias e nenhum foi o primeiro.
A frescura da água na garganta
De Adão. O ordenado Paraíso.
O olho decifrando a maior treva.
O amor dos lobos ao raiar da alba.
A palavra. O hexâmetro. Os espelhos.
A Torre de Babel e a soberba.
A lua que os Caldeus observaram.
As areias inúmeras do Ganges.
Chuang Tzu e a borboleta que o sonhou.
As maçãs feitas de ouro que há nas ilhas.
Os passos do errante labirinto.
O infinito linho de Penélope.
O tempo circular, o dos estóicos.
A moeda na boca de quem morre.
O peso de uma espada na balança.
Cada vã gota de água na clepsidra.
As águias e os fastos, as legiões.
Na manhã de Farsália Júlio César.
A penumbra das cruzes sobre a terra.
O xadrez e a álgebra dos Persas.
Os vestígios das longas migrações.
A conquista de reinos pela espada.
A bússola incessante. O mar aberto.
O eco do relógio na memória.
O rei que pelo gume é justiçado.
O incalculável pó que foi exércitos.
Sabes, Pai
sabes, pai
o cachecol bege nos muros da foz
cobria as árvores com o seu pêlo, ao vento
o boné azul, marinheiro nos cabelos louros
sussurrava pequenas frases às silentes águas
o teu sorriso tão leve, enternecia o rosto
esses óculos, teu cabelo nas tardes de solou o barco encalhado na areia breve
junto ao castelo onde nos passeávamos
eu tu a mãe, duas ou três falas e o meu corpo
que se chegava a vós junto à estradanestes muros da foz, abertos ao mar
que voava
Tarde no Mar
A tarde é de oiro rútilo: esbraseia
O horizonte: um cacto purpurino.
E a vaga esbelta que palpita e ondeia,
Com uma frágil graça de menino,Poisa o manto de arminho na areia
E lá vai, e lá segue ao seu destino!
E o sol, nas casas brancas que incendeia.
Desenha mãos sangrentas de assassino!Que linda tarde aberta sobre o mar!
Vai deitando do céu molhos de rosas
Que Apolo se entretém a desfolhar…E, sobre mim, em gestos palpitantes,
As tuas mãos morenas, milagrosas,
São as asas do sol, agonizantes…
Corpo
quantas cidades
te percorrem passo a passo
antes de entrar nos mil lares
que te aguardam
é mesmo preciso usar sapatos
porque não gastar na pedra
uma pele que se lixa longe do
tacto
dentro do ônibus os dias
viajam sentados
em meio a ombros colados
túneis esgoto bichos
sorvetes coxas anúncios
uma criança um adulto
modelam a cidade
na areia
longeperto do coração onde
uma cabeça gira o
mundo
correndo na grama a sombra
de quantos assistem sentados
enquanto das traves pende
o corpo de um de todos
enforcado
enquanto as orelhas ouvem
ouvem
e não gritam
há um fora dentro da gente
e fora da gente um dentro
demonstrativos pronomes
o tempo o mundo as pessoas
o olho
Romance de Nós
Estou à beira do mar,
estou à beira de ti.
Ardem no meu olhar
os sonhos que não vi.
Tudo em nós foi naufrágio,
não quisemos saber:
fizemos nosso adágio
do que não pôde ser.
Que resta do amor
a quem é como nós?
Envergonha-me pôr
em verso: «somos sós;
sós como amanhecer
às avessas do mundo;
sós como podem ser
as areias no fundo;
somos sós e sabê-lo
é negar o pronome
que de nós fez novelo
e por nós se consome».
Cântico Negro
“Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãeNão, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre,
Sobre pedra não se edifica nada. Sobre areia, tudo. É nosso dever edificar como se areia fosse pedra.