Passagens de LĂȘdo Ivo

29 resultados
Frases, pensamentos e outras passagens de LĂȘdo Ivo para ler e compartilhar. Os melhores escritores estĂŁo em Poetris.

Soneto Presunçoso

Que forma luminosa me acompanha
quando, entre o lusco e o fusco, bebo a voz
do meu tempo perdido, e um rio banha
tudo o que caminhei da fonte Ă  foz?

Dos homens desde o berço enfrento a sanha
que os difere da abelha e do albatroz.
Meu irmĂŁo, meu algoz! No perde-e-ganha
quem ganhou, quem perdeu, nĂŁo fomos nĂłs.

O mundo nada pesa. Atlas, sinto
a leveza dos astros nos meus ombros.
Minha alma desatenta Ă© mais pesada.

Quer ganhe ou perca, sou verdade e minto.
Se pergunto, a resposta Ă© dos assombros.
No sol a pino finjo a madrugada.

Soneto Da Conciliação

Que o amor nĂŁo me iluda, como a bruma
que esconde uma imprevista segurança.
Antes, sustente o chĂŁo em que descansa
o que se irĂĄ, perdido como a espuma.

Veja que eu me elegi, mas sem nenhuma
razão de assim fazer, e sem lembrança
de aproveitar apenas a esquivança
de que o amor nĂŁo prescinde em parte alguma.

Que também não se alheie ao que esclarece
o motivo real, de uma oferta,
reunir o acessĂłrio e o imprescindĂ­vel.

Antes, atente a tudo o que se tece
distante do seu dia inconsumĂ­vel
que dĂĄ certeza Ă  noite mais incerta.

Os Sinais

Saibam quantos vivem
neste mundo imenso:
Deus nĂŁo cheira a incenso.
É no estrume fresco
e na alga viscosa
que devemos ver
os sinais divinos
com os olhos de quando
Ă©ramos meninos.

Soneto De Roma

Felizes os que chegam de mĂŁos dadas
como se fosse o instante da partida
e entre as fontes que jorram a ĂĄgua clĂĄssica
dĂŁo em silĂȘncio adeus Ă  claridade.

No dourado crepĂșsculo da tarde
o que nos dividiu agora Ă© soma
e a vida que te dei e que me deste
voa entre os pombos no fulgor de Roma.

Todo fim é começo. A ågua da vida
eterna e musical sustenta o instante
que triunfa da morte nas ruĂ­nas.

Como o verĂŁo sucede Ă  neve fria
um sol final aquece o nosso amor,
devolução da aurora e luz do dia.

Soneto Da Mulher E A Nuvem

A JoĂŁo Cabral de Melo Neto

Nuvem no céu do nunca, nem tão branca
– assim era o amor, Ă  minha espreita,
e era a mulher, de nuvens sempre feita
e de véus e pudor que o amor arranca.

NĂŁo pude amĂĄ-la, pois nĂŁo era franca
a sua carne que o amor aceita,
nuvem que um céu de amor sempre atravanca
e entre praias e pĂąntanos se deita.

Bruma de carne, em vão céu de tormento,
parindo fogo aos meus dezesseis anos,
assim foi ela, sem deixar seu nome.

Nunca foi minha, e sĂł em pensamento
eu pude dar-lhe o amor de desenganos
que me deixou no corpo espanto e fome.

O meu leitor nĂŁo Ă© o que me lĂȘ. É o que me relĂȘ (caso exista). Um autor lido unicamente uma vez nĂŁo tem leitores, por mais retumbante que seja o seu sucesso.

Soneto Das Alturas

As minhas esquivanças vão no vento
alto do céu, para um lugar sombrio
onde me punge o descontentamento
que no mar nĂŁo desĂĄgua, nem no rio.

Às mudanças me fio, sempre atento
ao que muda e perece, e ardente e frio,
e novamente ardente Ă© no momento
em que luz o desejo, poldro em cio.

Meu corpo nada quer, mas a minh’alma
em fogos de amplidĂŁo deseja tudo
o que ultrapassa o humano entendimento.

E embora nada atinja, nĂŁo se acalma
e, sendo alma, transpÔe meu corpo mudo,
e aos céus pede o inefåvel e não o vento.

A maioria dos biĂłgrafos empenha-se em explicar a obra a partir da vida, quando o correcto Ă© exactamente o contrĂĄrio: trata-se de explicar a vida a partir da obra.