A Minha Avó
Minh’alma vai cantar, alma sagrada!
Raio de sol dos meus primeiros dias…
Gota de luz nas regiões sombrias
De minha vida triste e amargurada.Minh’alma vai cantar, velhinha amada!
Rio onde correm minhas alegrias…
Anjo bendito que me refugias
Nas tuas asas contra a sina irada!Minh’alma vai cantar… Transforma o seio
N’um cofre santo de carícias cheio,
Para este livro todo o meu tesouro… –Eu quero vê-lo, em desejada calma,
No rico santuário de tu’alma…
– Hóstia guardada n’um cibório de ouro! –
Sonetos sobre Rios
106 resultadosNada se Pode Comparar Contigo
O ledo passarinho, que gorjeia
D’alma exprimindo a cândida ternura;
O rio transparente, que murmura,
E por entre pedrinhas serpenteia;O Sol, que o céu diáfano passeia,
A Lua, que lhe deve a formosura,
O sorriso da Aurora, alegre e pura,
A rosa, que entre os Zéfiros ondeia;A serena, amorosa Primavera,
O doce autor das glórias que consigo,
A Deusa das paixões e de Citera;Quanto digo, meu bem, quanto não digo,
Tudo em tua presença degenera.
Nada se pode comparar contigo.
Soneto Das Alturas
As minhas esquivanças vão no vento
alto do céu, para um lugar sombrio
onde me punge o descontentamento
que no mar não deságua, nem no rio.Às mudanças me fio, sempre atento
ao que muda e perece, e ardente e frio,
e novamente ardente é no momento
em que luz o desejo, poldro em cio.Meu corpo nada quer, mas a minh’alma
em fogos de amplidão deseja tudo
o que ultrapassa o humano entendimento.E embora nada atinja, não se acalma
e, sendo alma, transpõe meu corpo mudo,
e aos céus pede o inefável e não o vento.
A uma Ausência
Sinto-me, sem sentir, todo abrasado
No rigoroso fogo que me alenta;
O mal, que me consome, me sustenta;
O bem, que me entretém, me dá cuidado.Ando sem me mover, falo calado;
O que mais perto vejo, se me ausenta,
E o que estou sem ver, mais me atormenta;
Alegro-me de ver-me atormentado.Choro no mesmo ponto em que me rio;
No mor risco me anima á confiança;
Do que menos se espera estou mais certo.Mas se de confiado desconfio,
É porque, entre os receios da mudança,
Ando perdido em mim como em deserto.
A Um Livro
No silêncio de cinzas do meu Ser
Agita-se uma sombra de cipreste,
Sombra roubada ao livro que ando a ler,
A esse livro de mágoas que me deste.Estranho livro que escreveste,
Artista da saudade e do sofrer!
Estranho livro aquele em que puseste
Tudo o que eu sinto, sem poder dizer!Leio-o, e folheio, assim, toda a minh’alma!
O livro que me deste é meu, e salma
As orações que choro e rio e canto!…Poeta igual a mim, ai quem me dera
Dizer o que tu dizes!… Quem soubera
Velar a minha Dor desse teu manto!…
Sta Iria
N’um rio virginal d’agoas claras e mansas,
Pequenino baixel, a santa vae boiando…
Pouco e pouco, dilue-se o oiro das suas tranças
E, diluido, ve-se as agoas aloirando.Circumda-a um resplendor, a luzir esperanças,
Unge-lhe a fronte o luar, avelludado e brando,
E, com a graça etherea e meiga das crianças,
Formosa Iria vae boiando, vae boiando…Á lua, cantam as aldeãs de Riba-Joia,
E, ao verem-na passar, phantastica barquinha,
Exclamam todas: «Olha um marmore que aboia!»Ella entra, emfim, no Oceano… E escuta-se, ao luar,
A mãe do pescador, rezando a ladainha
Pelos que andam, Senhor! sobre as agoas do mar…
António Nobre, in ‘Só’
Soneto Com Estrambote Enviesado
Alfaiate de mim costuro a roupa
que cabe ao figurino que me coube.Só meu verso protege essa amargura
desfiada de dia ao sol veloz,
para à noite tecer nova textura,
novelo de silêncio ao rés da voz.Enxoval construído nessa usura
solitária de andaimes, num retrós
de linha vertical, que se pendura
na pênsil teia atada, fio em fozdesse rio agulha que me costura
ao rendilhado de águas tropicais,
que sabe de saudades no meu cais.Viageiro de uma sanha que me traz
sempre de volta ao tear do meu destino
na seda depressiva me assassino.
Fogo
Faísca luminar da etérea chama
Que acendes nossa máquina vivente,
Que fazes nossa vista refulgente
Com eléctrico gás, com subtil flama:A nossa construção por ti se inflama;
Por ti, o nosso sangue gira quente;
Por ti, as fibras tem vigor potente,
Teu vivo ardor por elas se derrama.Tu, Fogo animador, nos vigorizas,
E à maneira de um voltejante rio,
Por todo o nosso corpo te deslizas.O homem, só por ti tem força e brio
Mas, se tu o teu giro finalizas,
Quando a chama se apaga, ele cai frio.
Soneto VII
No Rio Eufrate[s], ua erva, ou flor se cria
Que c’o Sol sobre as águas aparece,
E dentro se recolhe e se entristece
Quando no largo mar se esconde o dia.À vista de meu Sol ledo me via
Fora do rio, que dos olhos crece;
Agora que meu Sol não me amanhece,
Entre lágrimas vivo em noite fria.Mas desta flor o triste estado é breve,
Trás noite manhã tem; ai de quem chora
Contando noites, sem que um dia conte.O Sol já por milagre quedo esteve:
Também parou meu Sol, mas parou fora,
Para noite sem fim de meu Horizonte.
Dona Flor
Ela é tão meiga! Em seu olhar medroso
Vago como os crepúsculos do estio,
Treme a ternura, como sobre um rio
Treme a sombra de um bosque silencioso.Quando, nas alvoradas da alegria,
A sua boca úmida floresce,
Naquele rosto angelical parece
Que é primavera, e que amanhece o dia.Um rosto de anjo, límpido, radiante…
Mas, ai! sob êsse angélico semblante
Mora e se esconde uma alma de mulherQue a rir-se esfolha os sonhos de que vivo
– Como atirando ao vento fugitivo
As folhas sem valor de um malmequer…
LIV
Ninfas gentis, eu sou, o que abrasado
Nos incêndios de Amor, pude alguma hora,
Ao som da minha cítara sonora,
Deixar o vosso império acreditado.Se vós, glórias de amor, de amor cuidado,
Ninfas gentis, a quem o mundo adora,
Não ouvis os suspiros, de quem chora,
Ficai-vos; eu me vou; sigo o meu fado.Ficai-vos; e sabei, que o pensamento
Vai tão livre de vós, que da saudade
Não receia abrasar-se no tormento.Sim; que solta dos laços a vontade,
Pelo rio hei de ter do esquecimento
Este, aonde jamais achei piedade.
O Sono
É um braço magro de mulher, uns olhos espectrais
e brilhantes, uma cabeça de esfinge, uma lâmpada
que fumega. Talvez por os não vermos, vejamos rios
que flamejam, jardins sepultos, um antepassadodesconhecido e cinzento que se derrama no quarto,
um portão esvoaçante, uma pequena fenda por onde
se vai até às nuvens nocturnas. Tudo o que
lá possa estar é tudo: a vassoura esquecida,o rosto primordial da mãe, uma torre de cadáveres
ou um modesto banco de madeira onde deixaram
um vaso verídico de gerânios. Talvez um deusvítreo, rútilo ou, pintada de azul, uma virgem ocre
no cume de colina grega. Uma estranha música soa
nas paredes, antes do exílio para onde nos leva o sono.
Os Dias Conto, e cada Hora, e Momento
Os dias conto, e cada hora, e momento
qu’ alongando-me vou dos meus amores.
Nas árvores, nas pedras, ervas, flores,
parece que acho mágoa, e sentimento.As aves que no ar voam, o sol, e o vento,
montes, rios, e gados, e pastores,
as estradas, e os campos, mostram as dores
da minha saudade, e apartamento.E quanto m’era lá doce, e suave,
mais triste, e duro Amor cá mo apresenta,
a que entreguei da minha vida a chave.Em lágrimas força é qu’ as faces lave,
ou que não sinta a dor que na tormenta
memória da bonança faz mais grave.
Dialética
Quando não se queima lenha
na casa de palha e taipa,
sinal de fome que escapa
à saga que se faz senha.Rio, termômetro da várzea,
geografia de sol e chuva;
linha d’água, arco em curva,
elementos dessa faina.Um pássaro risca na tarde
a cambraia do seu canto;
o fado da sarça, que arde,queimando encardidos lírios
e a tua palidez palustre
em febre acendendo círios.
XXII
Neste álamo sombrio, aonde a escura
Noite produz a imagem do segredo;
Em que apenas distingue o próprio medo
Do feio assombro a hórrida figura;Aqui, onde não geme, nem murmura
Zéfiro brando em fúnebre arvoredo,
Sentado sabre o tosco de um penedo
Chorava Fido a sua desventura.As lágrimas a penha enternecida
Um rio fecundou, donde manava
D’ânsia mortal a cópia derretida:A natureza em ambos se mudava;
Abalava-se a penha comovida;
Fido, estátua da dor, se congelava.
VIII
Este é o rio, a montanha é esta,
Estes os troncos, estes os rochedos;
São estes inda os mesmos arvoredos;
Esta é a mesma rústica floresta.Tudo cheio de horror se manifesta,
Rio, montanha, troncos, e penedos;
Que de amor nos suavíssimos enredos
Foi cena alegre, e urna é já funesta.Oh quão lembrado estou de haver subido
Aquele monte, e as vezes, que baixando
Deixei do pranto o vale umedecido!Tudo me está a memória retratando;
Que da mesma saudade o infame ruído
Vem as mortas espécies despertando.
Aquela Triste E Leda Madrugada
Aquela triste e leda madrugada,
cheia toda de mágoa e de piedade,
enquanto houver no mundo saudade
quero que seja sempre celebrada.Ela só, quando amena e marchetada
saía, dando ao mundo claridade,
viu apartar se de ua outra vontade,
que nunca poderá ver se apartada.Ela só, viu as lágrimas em fio,
que, de uns e d’outros olhos derivadas,
s’acrescentaram em grande e largo rio.Ela viu as palavras magoadas
que puderam tornar o fogo frio,
e dar descanso às almas condenadas.
Vem Despontando A Aurora, A Noite Morre
Vem despontando a aurora, a noite morre,
Desperta a mata virgem seus cantores,
Medroso o vento no arraial das flores
Mil beijos furta e suspirando corre.Estende a névoa o manto e o val percorre,
Cruzam-se as borboletas de mil cores,
E as mansas rolas choram seus amores
Nas verdes balsas onde o orvalho escorre.E pouco a pouco se esvaece a bruma,
Tudo se alegra à luz do céu risonho
E ao flóreo bafo que o sertão perfuma.Porém minh’alma triste e sem um sonho
Murmura olhando o prado, o rio, a espuma:
Como isto é pobre, insípido, enfadonho!
Soneto de um Céptico
Febo há muito desceu no Ocidente
Por trás dos montes de rosa tingidos;
Eu, sofrendo, cerro os olhos doridos
Olhando o mundo que ante mim se estende.Pois pela noite o rio silente desce,
Oculto no escuro já voa o morcego;
Mas, nocturna, a alma não tem sossego,
É na escuridão que meu horror cresce.Odeio a noite que a mim se assemelha,
Só que em mim, nem astro ou centelha
Dispersa as nuvens da alma e da mente.Mas como a noite em seu manto sombrio,
Calado e escondido me quedo no frio,
Envolto em dúvidas e delas temente.
Nihil Novum
Na penumbra do pórtico encantado
De bruges, noutras eras, já vivi;
Vi os templos do Egipto com Loti;
Lancei flores, na Índia, ao rio sagrado.No horizonte de bruma opalizado,
Frente ao Bósforo errei, pensando em ti!…
O silêncio dos claustros conheci
Pelos poentes de nácar e brocado…Mordi as rosas brancas de Ispaã
E o gosto a cinza em todas era igual!
Sempre a charneca bárbara e deserta,Triste, a florir, numa ansiedade vã!
Sempre da vida — o mesmo estranho mal,
E o coração — a mesma chaga aberta!