Passagens de LuĂ­s Miguel Nava

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Frases, pensamentos e outras passagens de LuĂ­s Miguel Nava para ler e compartilhar. Os melhores escritores estĂŁo em Poetris.

Falésias

Poder-me-ĂŁo encontrar, trago um rapaz na minha
memĂłria, a casa a uma janela
da qual ele vem como um sabor Ă  boca,
falésias onde o aguardo à hora do crepúsculo.

Regresso assim ao mar de que nĂŁo posso
falar sem recorrer ao fogo e as tempestades
ao longe multiplicam-nos os passos.
Onde eu não sonhe a solidão fá-lo por mim.

O Uivo

Quando um cão uiva é como se o fizesse do interior dos nossos ossos e os pusesse à mostra, os confundisse com aquilo que nos cerca, de algum modo então o nosso esqueleto integra o pátio, a roupa branca pendurada, a pilha de tijolos, há entre tudo isso e os nossos ossos uma afinidade a que somente o cão, como se o mar todo lhe pesasse na garganta, empresta nitidez.

Ver Correr a Esperança

De bruços sobre o lavatório, abro a torneira, tapo o ralo, fico alguns momentos a ver correr a esperança, que vai enchendo aos poucos a bacia. Depois fecho a torneira e, retirando a tampa, vejo-a escoar-se em gorgolejos que cada vez são mais humanos e mais fundos. É a respiração do ralo, que só então dou conta de que está dentro de mim, por uma dessas distorções a que é costume eu ser atreito e que me impede ainda de me ver no próprio espelho, que, apesar de se encontrar à minha frente, não consigo deslocar do avesso dos meus olhos.

Os meus sentidos rangem, solidários com os canos, eles que eu gostaria de poder assimilar ao mar, a um céu azul, desanuviado, e que jamais me dão do espírito visões onde não se encastoem nuvens e rebentem tempestades.

Repito a operação. Mergulho Ă s vezes as mĂŁos na minha esperança, mas retiro-as ao cabo de algum tempo, antes que se transformem em raĂ­zes. Destapo uma vez mais o ralo. Assim corre a amizade – penso, olhando o redemoinho -, assim correm os afectos, que, depois de encherem a bacia onde a custo nos lavamos sem os fazermos transbordar,

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Paisagem Citadina

A pele por fulgurantes
instantes muitas vezes abre-se até onde
seria impensável que exercesse
com tĂŁo grande rigor o seu domĂ­nio.

Não temos então dela senão rápidas
visões, onde os reclames
do coração se cruzam, solitários
e agrestes, reflectidos

por trás nos ossos empedrados.
Em certas posições vêem-se as cordas
do nosso espírito esticadas num terraço.

A roupa dĂłi-nos porque, embora
nos cubra a pele, Ă© dentro
do espĂ­rito que estĂŁo os tecidos amarrados.

Sem outro Intuito

Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos entĂŁo todo enterrado
na nossa prĂłpria carne, envolto
por vezes em ferozes transparĂŞncias
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.

O Grito

Corria pela rua acima quando a súbita explosão dum grito o fez parar instantaneamente. Todo o seu corpo estremeceu. O que ele desde sempre receara acabara de ocorrer: algures, nesse momento, uma caneta começara a deslizar sobre uma folha de papel, dando assim corpo àquele grito que de há muito, como as esculturas no interior da pedra, se mantinha na expectativa desse simples gesto dum escritor para atingir a realidade. Tapou os ouvidos com as mãos. O grito mais não era que um sinal, mas o que esse sinal lhe transmitia deixava-o aterrado. Acabara de ser posta a funcionar uma engrenagem que a partir de agora nada nem ninguém, e muito menos ele, iria alguma vez poder travar, um mecanismo de que ele próprio iria inapelavelmente ser a maior vítima. Mais tarde ou mais cedo isso teria de se dar, mas agora que, sem qualquer aviso prévio, se soubera propulsado para outra dimensão da sua vida, como se os fios que a governavam tivessem repentinamente mudado de mãos, o facto de há longo tempo o pressentir não o impediu de olhar à sua volta com estranheza, uma estranheza que antes de mais nascia de tudo à primeira vista ter ficado como estava,

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