Falésias
Poder-me-ĂŁo encontrar, trago um rapaz na minha
memĂłria, a casa a uma janela
da qual ele vem como um sabor Ă boca,
falésias onde o aguardo à hora do crepúsculo.Regresso assim ao mar de que não posso
falar sem recorrer ao fogo e as tempestades
ao longe multiplicam-nos os passos.
Onde eu não sonhe a solidão fá-lo por mim.
Passagens de LuĂs Miguel Nava
6 resultadosO Uivo
Quando um cão uiva é como se o fizesse do interior dos nossos ossos e os pusesse à mostra, os confundisse com aquilo que nos cerca, de algum modo então o nosso esqueleto integra o pátio, a roupa branca pendurada, a pilha de tijolos, há entre tudo isso e os nossos ossos uma afinidade a que somente o cão, como se o mar todo lhe pesasse na garganta, empresta nitidez.
Ver Correr a Esperança
De bruços sobre o lavatório, abro a torneira, tapo o ralo, fico alguns momentos a ver correr a esperança, que vai enchendo aos poucos a bacia. Depois fecho a torneira e, retirando a tampa, vejo-a escoar-se em gorgolejos que cada vez são mais humanos e mais fundos. É a respiração do ralo, que só então dou conta de que está dentro de mim, por uma dessas distorções a que é costume eu ser atreito e que me impede ainda de me ver no próprio espelho, que, apesar de se encontrar à minha frente, não consigo deslocar do avesso dos meus olhos.
Os meus sentidos rangem, solidários com os canos, eles que eu gostaria de poder assimilar ao mar, a um cĂ©u azul, desanuviado, e que jamais me dĂŁo do espĂrito visões onde nĂŁo se encastoem nuvens e rebentem tempestades.
Repito a operação. Mergulho Ă s vezes as mĂŁos na minha esperança, mas retiro-as ao cabo de algum tempo, antes que se transformem em raĂzes. Destapo uma vez mais o ralo. Assim corre a amizade – penso, olhando o redemoinho -, assim correm os afectos, que, depois de encherem a bacia onde a custo nos lavamos sem os fazermos transbordar,
Paisagem Citadina
A pele por fulgurantes
instantes muitas vezes abre-se até onde
seria impensável que exercesse
com tĂŁo grande rigor o seu domĂnio.NĂŁo temos entĂŁo dela senĂŁo rápidas
visões, onde os reclames
do coração se cruzam, solitários
e agrestes, reflectidospor trás nos ossos empedrados.
Em certas posições vêem-se as cordas
do nosso espĂrito esticadas num terraço.A roupa dĂłi-nos porque, embora
nos cubra a pele, Ă© dentro
do espĂrito que estĂŁo os tecidos amarrados.
Sem outro Intuito
Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos entĂŁo todo enterrado
na nossa prĂłpria carne, envolto
por vezes em ferozes transparĂŞncias
que as pedras acirravam
sem outro intuito alĂ©m do de extraĂrem
às águas o silêncio que as unia.
O Grito
Corria pela rua acima quando a sĂşbita explosĂŁo dum grito o fez parar instantaneamente. Todo o seu corpo estremeceu. O que ele desde sempre receara acabara de ocorrer: algures, nesse momento, uma caneta começara a deslizar sobre uma folha de papel, dando assim corpo Ă quele grito que de há muito, como as esculturas no interior da pedra, se mantinha na expectativa desse simples gesto dum escritor para atingir a realidade. Tapou os ouvidos com as mĂŁos. O grito mais nĂŁo era que um sinal, mas o que esse sinal lhe transmitia deixava-o aterrado. Acabara de ser posta a funcionar uma engrenagem que a partir de agora nada nem ninguĂ©m, e muito menos ele, iria alguma vez poder travar, um mecanismo de que ele prĂłprio iria inapelavelmente ser a maior vĂtima. Mais tarde ou mais cedo isso teria de se dar, mas agora que, sem qualquer aviso prĂ©vio, se soubera propulsado para outra dimensĂŁo da sua vida, como se os fios que a governavam tivessem repentinamente mudado de mĂŁos, o facto de há longo tempo o pressentir nĂŁo o impediu de olhar Ă sua volta com estranheza, uma estranheza que antes de mais nascia de tudo Ă primeira vista ter ficado como estava,