Passagens de Miguel Torga

193 resultados
Frases, pensamentos e outras passagens de Miguel Torga para ler e compartilhar. Os melhores escritores estão em Poetris.

Paz

Calado ao pé de ti, depois de tudo,
Justificado
Como o instinto mandou,
Ouço, nesta mudez,
A força que te dobrou,
Serena, dizer quem és
E quem sou.

Agora, o remédio é partir discretamente, sem palavras, sem lágrimas, sem gestos. De que servem lamentos e protestos, contra o destino?

Frustração

Foi bonito
O meu sonho de amor.
Floriram em redor
Todos os campos em pousio.
Um sol de Abril brilhou em pleno estio,
Lavado e promissor.
Só que não houve frutos
Dessa primavera.
A vida disse que era
Tarde demais.
E que as paixões tardias
São ironias
Dos deuses desleais.

Cada Português que se Preza

É escusado. Cada português que se preza é uma muralha de suficiência contra a qual se quebram todas as vagas da inquietação. Conhece tudo, previu tudo, tem soluções para tudo. E quando alguém se apresenta carregado de dúvidas, tolhido de perplexidades, vira-lhe as costas ou tapa os ouvidos. Um mínimo de atenção ao interlocutor seria já uma prova de fraqueza, uma confissão de falibilidade. Quanto mais apertado o seu horizonte intelectual, mais porfia na vulgaridade das certezas que proclama. Não à maneira humilde e cabeçuda dos que se limitam a transmitir sem análise um saber ancestral, mas como um presumido doutor, impante de mediocridade.

Pedido

Ama-me sempre, como à flor do lírio
Bravo e sózinho, a quem a gente quer
Mesmo já seco na recordação.
Ama-me sempre, cheia da certeza
De que, lírio que sou da natureza,
Na minha altura eu brotarei do chão.

Combater é uma Diminuição

Combater é, em termos absolutos, uma diminuição. O homem, quer defenda a pátria, quer defenda as ideias, desde que passa os dias aos tiros ao vizinho, mesmo que o vizinho seja o monstro dos monstros, está a perder grandeza. Sempre que por qualquer motivo a razão passou a servir a paixão, houve um apoucamento do espirito, e é difícil que o espírito se salve num processo onde ele entra diminuído. Mas quando numa comunidade alguém endoidece e desata a ferir a torto e a direito, é preciso dominar o possesso de qualquer forma, e a guerra é fatal. Então, embora sabendo que vai empobrecer a sua alma, o homem normal começa a lutar, e só a morte ou o triunfo o podem fazer parar. É trágico, mas é natural. O que é contra todas as leis da vida é ficar ao lado da contenda como espectador. Sendo uma diminuição combater, é uma traição sem nome lavar as mãos do conflito, e passar as horas de binóculo assestado a contemplar a desgraça do alto dum monte. Assim é que nada se salva. Fica-se homem sem qualquer sentido, manequim vestido de gente, coisa que não tem personalidade. Porque nem se representa a inteligência,

Continue lendo…

As coisas do instinto e da natureza têm este condão: não envelhecem. Passa a filosofia mais transcendental, esgota-se o livro mais profundo. Mas é com um viço cada vez mais promissor que regressam as verdades simples e naturais.

O artista de agora, se quiser persistir, tem de ser um homem de acção. — Mas que acção? Ajudar a construir um mundo que o nega? Ajudar a destruir um mundo onde ele próprio já não vive? A acção dum artista é fazer a sua obra.

É preciso fazer um esforço contínuo para amar o presente. Viver pelo passado, pelo que se fez, pelo que se conseguiu, é o mesmo que alimentar uma fome premente com banquetes de outrora.

O Vício do Exagero

Hoje, no café, aqui-del-rei que eu exagero, aqui-del-rei que conto uma anedota e a anedota sai da minha boca transfigurada. Aqui-del-rei que descrevo um indivíduo e ponho bigodes de polícia onde havia somente uma discreta penugem. É certo, exagero. Começo a pintar um botão, e é capaz de me sair o cosmos.

Fraternidade

Não me dói nada meu particular.
Peno cilícios da comunidade.
Água dum rio doce, entrei no mar
E salguei-me no sal da imensidade.

Dei o sossego às ondas
Da multidão.
E agora tenho chagas
No coração
E uma angústia secreta.

Mas não podia, lírico poeta,
Ficar, de avena, a exercitar o ouvido,
Longe do mundo e longe do ruído.

Esta velha humanidade, tudo quanto seja acreditar que dois e dois são quatro, quatro e quatro, oito, e oito e oito, dezasseis, muito bem e sem nenhuma prova; agora quando lhe dizem que há gente que morre pela sua verdade, é preciso mostrar-lhe Sócrates a beber a cicuta, Catão com a espada enterrada no ventre, Cristo pregado na cruz, — e nem assim.

A uniformidade social é a monotonia de um batatal. E a história perdoa tudo, menos a monotonia.

Somos Cidadãos Sem Laços de Cidadania

É escusado. Em nenhuma área do comportamento social conseguimos encontrar um denominador comum que nos torne a convivência harmoniosa. Procedemos em todos os planos da vida colectiva como figadais adversários. Guerreamo-nos na política, na literatura, no comércio e na indústria. Onde estão dois portugueses estão dois concorrentes hostis à Presidência da República, à chefia dum partido, à gerência dum banco, ao comando de uma corporação de bombeiros. Não somos capazes de reconhecer no vizinho o talento que nos falta, as virtudes de que carecemos. Diante de cada sucesso alheio ficamos transtornados. E vingamo-nos na sátira, na mordacidade, na maledicência. Nas cidades ou nas aldeias, por fás e por nefas, não há ninguém sem alcunha, a todos é colado um rabo-leva pejorativo. Quem quiser conhecer a natureza do nosso relacionamento, leia as polémicas que travámos ao longo dos tempos. São reveladoras. A celebrada carta de Eça a Camilo ou a também conhecida deste ao conselheiro Forjaz de Sampaio dão a medida exacta da verrina em que nos comprazemos no trato diário. Gregariamente, somos um somatório de cidadãos sem laços de cidadania.

O Caminho de um Criador

Creio que tem havido sempre na nossa terra uma descabida preocupação canónica à ilharga de cada artista. Interessa mais ao zelo nacional averiguar se um poeta morreu sacramentado, do que ler os seus versos. Ninguém quer saber se o caminho de um criador o leva à morada das musas e da beleza; espreita-se da janela, mas é para ver se ele vai à missa. Ora isto é de analfabetos, de pessoas que verdadeiramente não sabem nem querem saber do valor de um poema, do mundo de liberdade e de independência que ele encerra. E uma gente assim não me convém, nem tão-pouco o Deus intolerante que servem. Por isso me vou divertindo com as minhas divindades naturais, luciferinamente, certo de que o diabo é ainda uma grande companhia. Foi a ele que Jesus disse que o seu reino não era deste mundo. E o meu, precisamente, é.

São Leonardo da Galafura

À proa dum navio de penedos,
A navegar num doce mar de mosto,
Capitão no seu posto
De comando,
S. Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade,
Sem pressa de chegar ao seu destino.
Ancorado e feliz no cais humano,
É num antecipado desengano
Que ruma em direcção ao cais divino.

Lá não terá socalcos
Nem vinhedos
Na menina dos olhos deslumbrados;
Doiros desaguados
Serão charcos de luz
Envelhecida;
Rasos, todos os montes
Deixarão prolongar os horizontes
Até onde se extinga a cor da vida.

Por isso, é devagar que se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que o rabelo avança
Debaixo dos seus pés de marinheiro.
E cada hora a mais que gasta no caminho
É um sorvo a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho!

Princípio

Não tenho deuses. Vivo
Desamparado.
Sonhei deuses outrora,
Mas acordei.
Agora
Os acúleos são versos,
E tacteiam apenas
A ilusão de um suporte.
Mas a inércia da morte,
O descanso da vide na ramada
A contar primaveras uma a uma,
Também me não diz nada.
A paz possível é não ter nenhuma.

Esperança

Tantas formas revestes, e nenhuma
Me satisfaz!
Vens às vezes no amor, e quase te acredito.
Mas todo o amor é um grito
Desesperado
Que apenas ouve o eco…
Peco
Por absurdo humano:
Quero não sei que cálice profano
Cheio de um vinho herético e sagrado.

Não há céu que me queira depois disto,
Nem deus capaz de ouvir-me.
Um homem firme
É firme até no céu,
E até diante
Do Criador!
É o que eu diria se, ressuscitado,
Fosse chamado
A depor!

A vida afetiva é a única que vale a pena. A outra apenas serve para organizar na consciência o processo da inutilidade de tudo.