Devo à Paisagem as Poucas Alegrias que Tive no Mundo
Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens só me deram tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam. Até os mais próximos, os mais amigos, me cravaram na hora própria um espinho envenenado no coração. A terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa foi sempre generosa. É claro que nunca um panorama me interessou como gargarejo. É mesmo um favor que peço ao destino: que me poupe à degradação das habituais paneladas de prosa, a descrever de cor caminhos e florestas. As dobras, e as cores do chão onde firmo os pés, foram sempre no meu espírito coisas sagradas e íntimas como o amor. Falar duma encosta coberta de neve sem ter a alma branca também, retratar uma folha sem tremer como ela, olhar um abismo sem fundura nos olhos, é para mim o mesmo que gostar sem língua, ou cantar sem voz. Vivo a natureza integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espectáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno. Bem sei que há gente que encontra o mesmo universo no jogo dum músculo ou na linha dum perfil.
Passagens de Miguel Torga
193 resultadosPacto
Juro e assino a jura:
O nosso amor há-de florir
À tona da mais funda sepultura
Que a vida nos abrir.
História Antiga
Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.
Mísera Condição a de um Artista
Peguei hoje por acaso num livro meu. Abri, comecei a ler, mas ao cabo de duas páginas desisti. Era tal a sensação de inacabado, de provisório e de rudimentar que tudo aquilo me dava, que fugi de mim próprio. Mísera condição a de um artista! Os outros, os vulgares, como homens, em relação à vida temporal, têm pelo menos esta piedade do tempo: o nivelamento de todas as horas, o esquecimento brumoso dos trágicos relevos do caminho andado. O pobre do poeta ou do escritor, esse vai deixando em cada passo a verónica da sua imaturação, da sua gaguez, — sem poder ao fim, quando do alto cuida ver o horizonte com maior lonjura, dar uma cor mais funda e mais significativa aos toscos painéis que pintou outrora.
O existencialismo é o faro de uma humanidade que pressente desgraça. É uma reacção instintiva e alógica, mas precavida contra a perspectiva do anonimato que a espera. Não há salvação fora do homem, diz Sartre. E o homem, que sente debaixo dos pés o abismo da sua destruição como indivíduo, agarra-se à própria raiz.
Prospecção
Não são pepitas de oiro que procuro.
Oiro dentro de mim, terra singela!
Busco apenas aquela
Universal riqueza
Do homem que revolve a solidão:
O tesoiro sagrado
De nenhuma certeza,
Soterrado
Por mil certezas de aluvião.
Cavo,
Lavo,
Peneiro,
Mas só quero a fortuna
De me encontrar.
Poeta antes dos versos
E sede antes da fonte.
Puro como um deserto.
Inteiramente nu e descoberto.
Livro de Horas
Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão ao leme da nau
Nesta deriva em que vou.Me confesso
Possesso
De virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais,
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas,
E o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído
Do tal Céu que Deus governa;
De ser um monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.
Arte sincera, política sincera, amor sincero… E o que isto é, explicado por um dicionário! O sábio que disse que os músculos da laringe é que pensavam, disse bem. São eles, na verdade, que pensam e articulam as palavras. O pior é o que permanece inexprimível na alma de cada um.
A desgraça de um artista é nunca estar de consciência tranquila em relação à arte. Fez sempre tudo o que devia por ela? Desbastou a pedra até ao último alento? Ou deixou estátuas inteiras sepultadas na pedreira, por não ter coragem de suar mais?
Porque o amor é simples,
Vale a pena colhê-lo.
Nasce em qualquer degredo,
Cria-se em qualquer chão.
Anda, não tenhas medo!
Não deixes sem amor o coração!
Cântico de Humanidade
Hinos aos deuses, não.
Os homens é que merecem
Que se lhes cante a virtude.
Bichos que lavram no chão,
Actuam como parecem,
Sem um disfarce que os mude.Apenas se os deuses querem
Ser homens, nós os cantemos.
E à soga do mesmo carro,
Com os aguilhões que nos ferem,
Nós também lhes demonstremos
Que são mortais e de barro.
O homem ou é um indivíduo, ou não é nada. Tudo, menos perder a confiança que é preciso ter no semelhante, base de todo o convívio e de toda a colaboração.
Vida
Do que a vida ê capaz!
A força dum alento verdadeiro!
O que um dedal de seiva faz
A rasgar o seu negro cativeiro !Ser!
Parece uma renúncia que ali vai,
— E é um carvalho a nascer
Da bolota que cai!
Ou a nossa amizade é realmente muito forte, ou isto é um deserto tão deserto que um homem quando agarra uma palmeira não a larga mais.
Recomeça… se puderes, sem angústia e sem pressa e os passos que deres, nesse caminho duro do futuro, dá-os em liberdade, enquanto não alcances não descanses, de nenhum fruto queiras só metade.
Ode
Eis-me nu e singelo!
Areia branca e o meu corpo em cima.
Um puro homem, natural e belo,
De carne que não peca e que não rima.A linha do horizonte é um nível quieto;
As velas, de cansaço, adormeceram;
E penas brancas, que eram luto preto,
Perderam-se no azul de onde vieram.Sol e frescura em toda a grande praia
Onde não pode haver agricultura;
Esterilidade limpa, que não caia
De pão e vinho a cósmica fartura.Dançam toninhas lúdicas no céu
Que visitam ligeiras e felizes;
Uma força sonâmbula as ergueu,
Mas seguras à seiva das raízes.Nem paz, nem guerra, nem desarmonia;
O sexo alegre, mas a repousar;
Um pleno, largo e caudaloso dia,
Sem horas e minutos a passar.Vem até mim, onda que trazes vida!
Soro da redenção!
Vem como o sangue doutra mãe pedida
Na hora de dar mundo ao coração!
Testamento
Na taça que eu lavrei quero que bebas
O segredo profundo dos meus dias;
E, dona do que é meu, de mim recebas
Toda a riqueza que não conhecias.A taça é branca como um véu sem cor,
E o segredo nimbado de vazio;
Quero que a veja pois o teu amor,
E bebas só dum trago o luar frio.Quero, depois, que quebres o cristal
De encontro à fraga dura da lembrança
Do Poeta que fui ao natural
Junto de ti a trabalhar na herança.
As teorias de Freud estarão certas; mas o mito que fez nascer Vénus da espuma, também está.
Confissão Social
Ninguém tem qualquer interesse em saber isto; mas se eu tivesse de me confessar socialmente, a síntese do meu desespero era esta: que cheguei, em matéria de descrença no homem, à saturação.
E, contudo, este perdido, este condenado, merece-me uma ternura tal, que não há tolice que faça, asneira que invente, mentira que diga que me deixem indiferente. Tenho por força de olhar, reparar, ouvir, e comentar com toda a paixão de que sou capaz.
Não posso. Passar a vida assim, a jogar a bisca com o prior, a levantar-me às tantas da madrugada para ir ver um doente ao Gandramás, a ouvir e a contar histórias de caça o resto do tempo, valha eu o que valer, é um destino que não mereço.