Passagens de Natália Correia

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Poetizar as mais fundas aspirações humanas arrancando-as do peito dos homens distraídos é o que se deve entender por mensagem do poeta.

O espírito manifesta-se de diversas formas divinas, que são os deuses. É isso o politeísmo! O politeísmo é a própria demonstração de que a unidade está no espírito e que os deuses são facetas dessa unidade. Eu sou uma espiritualista!

Bilhete para o Amigo Ausente

Lembrar teus carinhos induz
a ter existido um pomar
intangíveis laranjas de luz
laranjas que apetece roubar.

Teu luar de ontem na cintura
é ainda o vestido que trago
seda imaterial seda pura
de criança afogada no lago.

Os motores que entre nós aceleram
os vazios comboios do sonho
das mulheres que estão à espera
são o único luto que ponho.

A mensagem como postulado poético coarcta a liberdade do criador. Mas convém não esquecer que só os casos em que a mensagem superou a poesia deram lugar a que o termo caísse em descrédito.

A reforma política que mais ambicionaria no mundo seria um tipo de sociedade que consiga conciliar o individual e o colectivo.

Eu sempre estive na serenidade, daí as pessoas, às vezes, poderem achar que a minha expressão é um pouco rebarbativa, mas isso é precisamente o desafogar de coisas que não quero ter recalcadas em mim. Não cultivo a morbidez dos conflitos interiores. Sou um ser escandalosamente saudável! Por isso, canto os deuses.

O Salão Literário

Não tenho qualquer salão literário. Essa é uma das lendas que inventaram a meu respeito, não sei porquê. As pessoas, aqui em Portugal, estão sedentas de acontecimentos. E, muito simplesmente, resolveram transformar num acontecimento uma coisa para a qual não tenho a mínima vocação. Não tenho qualquer salão literário, como não teria paciência para o manter, como me parece que essa é uma ideia cediça, bolorenta e ridícula. Não conheço salões literários na época actual. A única coisa que me acontece – e acho que me pertence esse direito – é receber alguns amigos que, frequentemente, vêm a minha casa. Ora isto é vulgar em todas as casas de Lisboa onde há interesses intelectuais, onde se discutem problemas de ordem literária ou não.

Eu sou desastrada, sou uma pessoa débil, uma pessoa falhada, alegremente, conscientemente falhada em muitas coisas. Não sei tratar de nada, na ordem das coisas práticas, não sei assinar um cheque, sou perfeitamente desastrada. Só sei escrever.

Paz

Irreprimível natureza
exacta medida do sem-fim
não atinjas outras distâncias
que existem dentro de mim.

Que os meus outros rostos não sejam
o instável pretexto da minha essência.
Possam meus rios confluir
para o mar duma só consciência.

Quero que suba à minha fronte
a serenidade desta condição:
harmonia exterior à estátua
que sabe que não tem coração.

Projecto de Bodas

Hoje apetece que uma rosa seja
o coração exterior do dia
e a tua adolescência de cereja
no meu bico de Isolda cotovia.

Hoje apetece a intuição dum cais
para a lucidez de não chegar a tempo
e ficarmos violetas nupciais
com a lua a celebrar o casamento.

Apetece uma casa cor-de-rosa
com um galo vermelho no telhado
e os degraus duma seda vagarosa
que nunca chegue à varanda do noivado.

Hoje apetece que o cigarro saiba
a ter fumado uma cidade toda.
Ser o anel onde o teu dedo caiba
e faltarmos os dois à nossa boda.

Hoje apetece um interior de esponja
E como estátua a que moldar o vento.
Deitar as sortes e, se sair monja,
Navegar ao acaso o meu convento.

Hoje apetece o mundo pelo modo
Como vai despenhar-se um trapezista.
Abrir mais uma flor no nosso lodo:
Pedir-lhe um salto e retirar-lhe a pista.

Hoje apetece que a cor dum automóvel
Seja o Egipto de novo em movimento;
E que no espaço duma gota imóvel
Caiba a possível capital do vento.

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O homem meteu-se num labirinto. Nós descansámos muitos séculos. A mulher tem um viço, tem reservas em si, tem energias armazenadas que o homem foi perdendo.

A Missão da Mulher

Acho que a missão da mulher é assombrar, espantar. Se a mulher não espanta… De resto, não é só a mulher, todos os seres humanos têm que deslumbrar os seus semelhantes para serem um acontecimento. Temos que ser um acontecimento uns para os outros. Então a pessoa tem que fazer o possível para deslumbrar o seu semelhante, para que a vida seja um motivo de deslumbramento. Se chama a isso sedução, cumpri aquilo que me era forçoso fazer.

Em Cruz não Era Acabado

As crianças viravam as folhas
dos dias enevoados
e da página do Natal
nasciam os montes prateados

da infância. Intérmina, a mãe
fazia o bolo unido e quente
da noite na boca das crianças
acordadas de repente.

Torres e ovelhas de barro
que do armário saíam
para formar a cidade
onde o menino nascia.

Menino pronunciado
como uma palavra vagarosa
que terminava numa cruz
e começava numa rosa.

Natal bordado por tias
que teciam com seus dedos
estradas que então havia
para a capital dos brinquedos.

E as crianças com a tinta invisível
do medo de serem futuro
escreviam os seus pedidos
no muro que dava para o impossível,

chão de estrelas onde dançavam
a sua louca identidade
de serem no dicionário
da dor futura: saudade.

O Livro dos Amantes

I

Glorifiquei-te no eterno.
Eterno dentro de mim
fora de mim perecível.
Para que desses um sentido
a uma sede indefinível.

Para que desses um nome
à exactidão do instante
do fruto que cai na terra
sempre perpendicular
à humidade onde fica.

E o que acontece durante
na rapidez da descida
é a explicação da vida.

II

Harmonioso vulto que em mim se dilui.
Tu és o poema
e és a origem donde ele flui.
Intuito de ter. Intuito de amor
não compreendido.
Fica assim amor. Fica assim intuito.
Prometido.

III

Príncipe secreto da aventura
em meus olhos um dia começada e finita.
Onda de amargura numa água tranquila.
Flor insegura enlaçada no vento que a suporta.
Pássaro esquivo em meus ombros de aragem
reacendendo em cadência e em passagem
a lua que trazia e que apagou.

IV

Dá-me a tua mão por cima das horas.
Quero-te conciso.
Adão depois do paraíso
errando mais nítido à distância
onde te exalto porque te demoras.

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A arte e a sociedade são inseparáveis. A sociedade produz a arte e o produto aperfeiçoa a sociedade. Esta finalidade pode não estar imediatamente patente na espécie artística, mas é ela que a determina. Até mesmo as formas de arte declaradamente negativas ou indiferentes obedecem por caminhos ínvios a esta lei.

Poesia actual julgo eu ser aquela que vem criar uma nova exigência numa época e não a que é exigida por essa época.

Cidadania

Buquê de ruídos úteis
o dia. O tom mais púrpura
do avião sobressai
locomovida rosa pública.

Entre os edifícios a acácia
de antigamente ainda ousa
trazer ao cimo a folhagem
sua dor de apertada coisa.

Um solo de saxofone excresce
mensagem que a morte adia
aflito pássaro que enrouquece
a garganta da telefonia.

Em cada bolso do cimento
uma lenta aranha de gás
manipula o dividendo
de um suicídio lilás.

Elegia dos Amantes Lúcidos

Na girândola das árvores (e não há quem as detenha)
Deixa de fora a tarde o vermelho que a tinge.
Se ao menos tu ficasses na pausa que desenha
O contorno lunar da noite que te finge!

Se ao menos eu gelasse uma corda do vento
para encontrar a forma exacta dum violino
Que fosse a sensibilidade deste pensamento
Com que a minha sombra vai pensando o meu destino

E não houvesse o sono dum telhado
Entre ter de haver eu e haver o tecto;
E a eternidade não estivesse ao lado
A colocar-nos nas costas as asas dum insecto

Meu amor, meu amor, teu gesto nasce
Para partir de ti e ser ao longe
A cor duma cidade que nos pasce
Como a ausência de deus pastando um monge

Ah, se uma súbita mão na hora a pique
Tangendo harpas geladas por segredos
Desprendesse uma aragem de repiques
Destes sinos parados pelo medo!

Mas só porque vieste fez-se tarde,
Ou é a vida que nasce já tardia
Como uma estrela que se acende e arde
Porque não cabe na rapidez do dia?

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Ode à Paz

Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!

Acho que a missão da mulher é assombrar, espantar. Se a mulher não espanta… De resto, não é só a mulher, todos os seres humanos têm que deslumbrar os seus semelhantes para serem um acontecimento. Temos que ser um acontecimento uns para os outros. Então a pessoa tem que fazer o possível para deslumbrar o seu semelhante, para que a vida seja um motivo de deslumbramento. Se chama a isso sedução, cumpri aquilo que me era forçoso fazer.
O meu primeiro contacto com as pessoas é de uma grande afabilidade. Quando as pessoas recusam essa afabilidade, então eu dou-lhes o que elas me pedem: irascibilidade. Volto-lhes as costas irascivelmen-te, mais nada. Se é isso mau génio, talvez seja.