Poemas sobre Hoje de Carlos Drummond de Andrade

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Poemas de hoje de Carlos Drummond de Andrade. Leia este e outros poemas de Carlos Drummond de Andrade em Poetris.

AusĂȘncia

Por muito tempo achei que a ausĂȘncia Ă© falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje nĂŁo a lastimo.
NĂŁo hĂĄ falta na ausĂȘncia.
A ausĂȘncia Ă© um estar em mim.
E sinto-a, branca, tĂŁo pegada, aconchegada nos meus
[braços,
que rio e danço e invento exclamaçÔes alegres,
porque a ausĂȘncia, essa ausĂȘncia assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Em Louvor da Miniblusa

Hoje vai a antiga musa
celebrar a nova blusa
que de Norte a Sul se usa
como graça de verão.
Graça que mostra o que esconde
a blusa comum, mas onde
um velho da era do bonde
encontrarĂĄ mais mensagem
do que na bossa estival
da rola que ao natural
mostra seu colo fatal,
ou quase, pois tanto faz,
se a anatomia me ensina
a tocar a concertina
em busca ao mapa da mina
que ora muda de lugar?
JĂĄ nem sei mais o que digo
ao divisar certo umbigo:
penso em flor, cereja, figo,
penso em deixar de pensar,
e em louvar o costureiro
ou costureira — joalheiro
que expÔe a qualquer soleiro
esse profundo diamante
exclusivo antes das praias
(Copas, Leblons, Marambaias
e suas areias gaias).
Salve, moda, salve, sol
de sal, de alegre inventiva,
que traz à matéria viva
a prova figurativa!
Pode a indĂșstria de fiação
carpir-se do pouco pano
que o figurino magano
reduz a zero, cada ano.
Que importa?

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Balada do Amor através das Idades

Eu te gosto, vocĂȘ me gosta
desde tempos imemoriais.
Eu era grego, vocĂȘ troiana,
troiana mas nĂŁo Helena.
SaĂ­ do cavalo de pau
para matar seu irmĂŁo.
Matei, brigĂĄmos, morremos.

Virei soldado romano,
perseguidor de cristĂŁos.
Na porta da catacumba
encontrei-te novamente.
Mas quando vi vocĂȘ nua
caĂ­da na areia do circo
e o leĂŁo que vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leĂŁo comeu nĂłs dois.

Depois fui pirata mouro,
flagelo da TripolitĂąnia.
Toquei fogo na fragata
onde vocĂȘ se escondia
da fĂșria de meu bergantim.
Mas quando ia te pegar
e te fazer minha escrava,
vocĂȘ fez o sinal-da-cruz
e rasgou o peito a punhal…
Me suicidei também.

Depois (tempos mais amenos)
fui cortesĂŁo de Versailles,
espirituoso e devasso.
VocĂȘ cismou de ser freira…
Pulei muro de convento
mas complicaçÔes políticas
nos levaram Ă  guilhotina.

Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
VocĂȘ Ă© uma loura notĂĄvel,
boxa, dança, pula, rema.

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Os Velhos

Todos nasceram velhos — desconfio.
Em casas mais velhas que a velhice,
em ruas que existiram sempre — sempre
assim como estĂŁo hoje
e nĂŁo deixarĂŁo nunca de estar:
soturnas e paradas e indeléveis
mesmo no desmoronar do JuĂ­zo Final.
Os mais velhos tĂȘm 100, 200 anos
e lĂĄ se perde a conta.
Os mais novos dos novos,
nĂŁo menos de 50 — enorm’idade.
Nenhum olha para mim.
A velhice o proĂ­be. Quem autorizou
existirem meninos neste largo municipal?
Quem infrigiu a lei da eternidade
que não permite recomeçar a vida?
Ignoram-me. NĂŁo sou. Tenho vontade
de ser também um velho desde sempre.
Assim conversarĂŁo
comigo sobre coisas
seladas em cofre de subentendidos
a conversa infindĂĄvel de monossĂ­labos, resmungos,
tosse conclusiva.
Nem me vĂȘem passar. NĂŁo me dĂŁo confiança.
Confiança! Confiança!
DĂĄdiva impensĂĄvel
nos semblantes fechados,
nos felpudos redingotes,
nos chapéus autoritårios,
nas barbas de milénios.
Sigo, seco e sĂł, atravessando
a floresta de velhos.

O Amor Bate na Porta

Cantiga do amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os Ăłculos dos homens,
o amor, seja como for,
Ă© o amor.

Meu bem, nĂŁo chores,
hoje tem filme de Carlito!

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
CardĂ­aco e melancĂłlico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos jĂĄ maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, nĂŁo te atormentes.
Certos åcidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes nĂŁo mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cĂłcega
o amor desenha uma curva
propÔe uma geometria.

Amor Ă© bicho instruĂ­do.
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na ĂĄrvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrĂłgino.
Essa ferida, meu bem,
Ă s vezes nĂŁo sara nunca
Ă s vezes sara amanhĂŁ.

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