Alcool
Guilhotinas, pelouros e castelos
Resvalam longamente em procissão;
Volteiam-me crepúsculos amarelos,
Mordidos, doentios de roxidão.Batem asas d’auréola aos meus ouvidos,
Grifam-me sons de côr e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Desce-me a alma, sangram-me os sentidos.Respiro-me no ar que ao longe vem,
Da luz que me ilumina participo;
Quero reunir-me, e todo me dissipo –
Luto, estrebucho… Em vão! Silvo pra além…Corro em volta de mim sem me encontrar…
Tudo oscila e se abate como espuma…
Um disco de ouro surge a voltear…
Fecho os meus olhos com pavor da bruma…Que droga foi a que me inoculei?
Ópio d’inferno em vez de paraíso?…
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eterizo?Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi alcool mais raro e penetrante:
É só de mim que eu ando delirante –
Manhã tão forte que me anoiteceu.
Poemas Interrogativos de Mário de Sá-Carneiro
11 resultadosVontade de Dormir
Fios d’ouro puxam por mim
A soerguer-me na poeira –
Cada um para o seu fim,
Cada um para o seu norte…. . . . . . . . . . . . . . .
– Ai que saudade da morte…
. . . . . . . . . . . . . . .
Quero dormir… ancorar…
. . . . . . . . . . . . . . .
Arranquem-me esta grandeza!
– Pra que me sonha a beleza,
Se a não posso transmigrar?…
Quási
Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa…
Se ao menos eu permanecesse àquem…Assombro ou paz? Em vão… Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dôr! – quási vivido…Quási o amor, quási o triunfo e a chama,
Quási o princípio e o fim – quási a expansão…
Mas na minh’alma tudo se derrama…
Entanto nada foi só ilusão!De tudo houve um começo… e tudo errou…
– Ai a dôr de ser-quási, dor sem fim… –
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou…Momentos d’alma que desbaratei…
Templos aonde nunca pus um altar…
Rios que perdi sem os levar ao mar…
Ansias que foram mas que não fixei…Se me vagueio, encontro só indicios…
Ogivas para o sol – vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sôbre os precipícios…
Dispersão
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida…Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:Porque um domingo é familia,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem familia).O pobre moço das ânsias…
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.A grande ave dourada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traíu a si mesmo.Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projecto:
Se me olho a um espelho,
Torniquete
A tômbola anda depressa,
Nem sei quando irá parar –
Aonde, pouco me importa;
O importante é que pare…
– A minha vida não cessa
De ser sempre a mesma porta
Eternamente a abanar…Abriu-se agora o salão
Onde há gente a conversar.
Entrei sem hesitação –
Somente o que se vai dar?
A meio da reunião,
Pela certa disparato,
Volvo a mim a todo o pano:Às cambalhotas desato,
E salto sobre o piano…
– Vai ser bonita a função!
Esfrangalho as partituras,
Quebro toda a caqueirada,
Arrebento à gargalhada,
E fujo pelo saguão…Meses depois, as gazetas
Darão críticas completas,
Indecentes e patetas,
Da minha última obra…
E eu – prà cama outra vez,
Curtindo febre e revés,
Tocado de Estrela e Cobra…
Partida
Ao ver escoar-se a vida humanamente
Em suas águas certas, eu hesito,
E detenho-me às vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.Afronta-me um desejo de fugir
Ao mistério que é meu e me seduz.
Mas logo me triunfo. A sua luz
Não há muitos que a saibam reflectir.A minh’alma nostálgica de além,
Cheia de orgulho, ensombra-se entretanto,
Aos meus olhos ungidos sobe um pranto
Que tenho a fôrça de sumir também.Porque eu reajo. A vida, a natureza,
Que são para o artista? Coisa alguma.
O que devemos é saltar na bruma,
Correr no azul á busca da beleza.É subir, é subir àlem dos céus
Que as nossas almas só acumularam,
E prostrados resar, em sonho, ao Deus
Que as nossas mãos de auréola lá douraram.É partir sem temor contra a montanha
Cingidos de quimera e d’irreal;
Brandir a espada fulva e medieval,
A cada hora acastelando em Espanha.É suscitar côres endoidecidas,
Ser garra imperial enclavinhada,
E numa extrema-unção d’alma ampliada,
Serradura
A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.E ei-la, a mona, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.Pois é assim: a minha Alma
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje sonha só pelúcias.Vai aos Cafés, pede um bock,
Lê o “Matin” de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo:Dentro de mim é um fardo
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido dum moscardo,
Ou comichão que não passa.Folhetim da “Capital”
Pelo nosso Júlio Dantas –
Ou qualquer coisa entre tantas
Duma antipatia igual…O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia!…Qualquer dia, pela certa,
Quando eu mal me precate,
É capaz dum disparate,
Se encontra a porta aberta…Isto assim não pode ser…
Mas como achar um remédio?
Epígrafe
A sala do castelo é deserta e espelhada.
Tenho medo de Mim. Quem sou? De onde cheguei?…
Aqui, tudo já foi… Em sombra estilizada,
A cor morreu – e até o ar é uma ruína…
Vem de Outro tempo a luz que me ilumina –
Um som opaco me dilui em Rei…
Escavação
Numa ânsia de ter alguma cousa,
Divago por mim mesmo a procurar,
Desço-me todo, em vão, sem nada achar,
E a minh’alma perdida não repousa.Nada tendo, decido-me a criar:
Brando a espada: sou luz harmoniosa
E chama genial que tudo ousa
Unicamente à fôrça de sonhar…Mas a vitória fulva esvai-se logo…
E cinzas, cinzas só, em vez do fogo…
– Onde existo que não existo em mim?. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .Um cemitério falso sem ossadas,
Noites d’amor sem bôcas esmagadas –
Tudo outro espasmo que princípio ou fim…
Como Eu não Possuo
Olho em volta de mim. Todos possuem –
Um afecto, um sorriso ou um abraço.
Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço.Roça por mim, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruivamente;
São êxtases da côr que eu fremiria,
Mas a minh’alma pára e não os sente!Quero sentir. Não sei… perco-me todo…
Não posso afeiçoar-me nem ser eu:
Falta-me egoísmo pra ascender ao céu,
Falta-me unção pra me afundar no lôdo.Não sou amigo de ninguém. Pra o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem eu estimasse – ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!…Castrado de alma e sem saber fixar-me,
Tarde a tarde na minha dor me afundo…
Serei um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?…* * * * *
Como eu desejo a que ali vai na rua,
Tão ágil, tão agreste, tão de amor…
Como eu quisera emmaranhá-la nua,
Bebê-la em espasmos d’harmonia e côr!…Desejo errado… Se a tivera um dia,
Angulo
Aonde irei neste sem-fim perdido,
Neste mar ôco de certezas mortas? –
Fingidas, afinal, todas as portas
Que no dique julguei ter construido…– Barcaças dos meus impetos tigrados,
Que oceano vos dormiram de Segrêdo?
Partiste-vos, transportes encantados,
De embate, em alma ao rôxo, a que rochêdo?…– Ó nau de festa, ó ruiva de aventura
Onde, em Champanhe, a minha ânsia ia,
Quebraste-vos também ou, por ventura,
Fundeaste a Ouro em portos d’alquimia?…. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Chegaram à baía os galeões
Com as sete Princesas que morreram.
Regatas de luar não se correram…
As bandeiras velaram-se, orações…Detive-me na ponte, debruçado,
Mas a ponte era falsa – e derradeira.
Segui no cais. O cais era abaulado,
Cais fingido sem mar á sua beira…–